A Escrita das Mulheres

Documentário produzido pela Lascene produções | Inédito

Literatura feminina ou literatura de autoria feminina?

“Não existe lugar de fala na arte”. Assim afirma a escritora Sônia Rodrigues, na entrevista para o documentário A Escrita das Mulheres. Para ela, bem como para outras entrevistadas, os livros podem ser de autoria feminina ou masculina, mas não há que se falar em obras femininas ou masculinas, pois mesmo um autor homem seria capaz, com talento e boa vontade, de encontrar a alma feminina a ponto de retratá-la com perícia, detalhe e profunda realidade. Exemplos não faltariam, tal como Flaubert, ao descrever Madame Bovary, ou Tchekhov através de suas diversas criações femininas (com indiscreta predileção ao As Três Irmãs).

A premiada escritora Lúcia Bettencourt questiona: “o que faz com que reconheçamos verdade na personagem de Madame Bovary, que foi escrita por um homem?” Pergunta que vem a ser respondida pela escritora e tradutora Susana Fuentes: “há uma sensibilidade no feminino que pode também estar no texto de um autor.”

A escritora Beatriz Bracher é ainda mais assertiva: “nunca ninguém conseguiu me dizer quais são as características da literatura feminina… tudo o que me falam encontro em livros escritos por homens também.”

“Eu não conseguiria ler um bom livro e saber se ele foi escrito por um homem ou por uma mulher” (Ana Maria Machado, jornalista, professora, pintora e escritora).

A eterna Nélida Piñon, que partiu e nos deixou as saudades e seu imenso legado artístico, descortina sua visão com tamanha lucidez:

“Eu acho muito importante que o autor pense ‘eu sou você’, ‘eu sou homem’, ‘eu sou mulher’. Você tem que assumir todas as formas. Eu não posso ser a escritora que eu desejo ser se eu não for mulher, se eu não for homem, se eu não for criança, se eu não sentir as vibrações, as modalidades afetivas, os bichos” (Nélida Piñon).

No entanto, há escritoras que possuem uma visão um pouco diferente. Elas acreditam que a escrita feminina é essencialmente singular e, portanto, não pode ser simulada por um autor masculino.

A poeta Alice Ruiz defende que o fato do ser mulher determina a escrita: “o tempo inteiro eu sou uma mulher que escreve.”

Meimei Bastos e Cristina Sobral também advogam nessa vertente. Meimei se recorda da força da escrita feminina, e Sobral nos faz lembrar que não só existe uma escrita feminina, mas que “ela é urgente”.

Para a escritora Marina Colasanti, a escrita é sim feminina, pois a ferramenta do autor é o olhar, e o olhar sobre o mundo possui um gênero: “eu vejo o mundo com olhos de mulher.”
Nascida no Chile, a escritora e tradutora brasileira Carola Saavedra compartilha dessa visão, ao dizer que é mais fácil se aproximar de uma personagem feminina; todavia, em relação ao homem há uma distância, um limite – depois desse limite, a escrita advém de pura observação: é algo mais intuitivo, pois está para além da fronteira da compreensão da alma feminina.

Para essas mulheres, a escrita não é, portanto, fruto tão somente de uma construção social. Homens e mulheres são visceralmente distintos, de modo que a visão que possuem de mundo e, por consequência, seus escritos, encontrarão, invariavelmente, diferentes percepções e valores.

“Nosso sangue se dá
de mão beijada
se entrega ao tempo
como chuva ou vento”
(Marina Colasanti)

A controvérsia segue no documentário, porém, o que é ponto pacífico entre as escritoras é a importância de as mulheres escreverem; escreverem para construir uma identidade, até porque a literatura também é um discurso social. A literatura feminina – ou de autoria feminina – é fruto da interrogação das mulheres em cada período histórico.

E hoje as conjunturas são deveras oportunas, como bem destacou Heloísa Buarque de Hollanda: a presença das mulheres é enorme e passa dos 50% no mercado editorial, de modo que “a literatura feminina hoje está no seu melhor momento”, afirmou a ensaísta.

“Ser mulher… Buscar um companheiro, e encontrar um senhor”
(Gilka Machado)

É importante destacar que o bom momento não é fruto do acaso, mas sim de uma construção – histórica, lenta e corajosa. Em A Escrita das Mulheres, as escritoras, poetas, tradutoras, estudiosas e pensadoras entrevistadas homenageiam as célebres escritoras que desvelaram esse mundo sem limites da escrita, para que os primeiros fachos de esperança alcançassem as novas gerações e, nos dias presentes, possamos comemorar um cenário em que mulheres já estão completamente integradas, ativas e protagonistas no mercado editorial.

Ganham destaque Virginia Woolf, verdadeira lenda britânica nascida no século XIX, e, no Brasil, Gilka Machado, escritora que alcançou a fama no início do século XX. Essas escritoras retiraram as mulheres de suas casas, de suas realidades impostas e limitadas, rumo à arte, à eroticidade, ao leme que permitiu tomar a direção de suas próprias vidas.

“Luzia não queria ser santa; queria ser menino, porque santa não pode fazer nada, e menino pode fazer tudo” (Susane Fuentes).

O documentário A Escrita das Mulheres desenvolve esse questionamento sobre a essencialidade do gênero feminino na literatura e abarca diferentes visões de algumas das principais escritoras brasileiras. Embora a discussão não tenha um desfecho e, portanto, a pergunta continue acesa e provocante, o maior tesouro dessa produção é justamente o encontro de tantas personalidades notáveis, as deliciosas conversas e a rica inspiração motivadora que vem do encontro de mulheres tão inteligentes, fortes, corajosas, vivas, donas de si, protagonistas de seu próprio mundo e criadoras da sua história.

“Anseio por liberar-me das obrigações, da falsa polidez, do peso dos objetos. A solidão, que a noite acentua, é a minha salvaguarda” (Nélida Cuíñas Piñón, nascida em 3 de maio de 1937, no Rio de Janeiro, falecida em 17 de dezembro de 2022, com 85 anos, e integrante da Academia Brasileira de Letras).