“Então, ela me passava histórias ao final da tarde. Ela era comerciante, vendia banana, era bananeira. E no final do dia ela chegava cansada e contava histórias. Ela me deu de presente uma pedra verde, grande, transparente, e eu ouvia e viajava nessa pedra com as histórias dela.”
Eliane Potiguara
Em entrevista ao Mulheres de Luta, Eliane Potiguara contou como sua avó lhe despertou o amor pelas histórias.
Eliane Potiguara nasceu em 1950. Quando criança, as lágrimas dos olhos de sua avó despertavam também a sua curiosidade. A avó, Maria de Lourdes de Souza, não teve uma educação formal, mas tinha a sabedoria do acervo de histórias orais da cosmologia e dos costumes indígenas. A pedra verde que Eliane ganhou da avó, as lágrimas que ela percorria com os olhos, as histórias, tudo compunha um universo fabuloso e rico no qual a menina mergulhou.
No entanto, há histórias que nem sempre são contadas. Algumas são esquecidas, outras são recontadas, outras são invisibilizadas sistematicamente. Eliane Potiguara resgatou histórias, criou outras e lançou luz sobre as que tentaram esconder.
Seu bisavô Chico Solón de Souza, um índio potiguara, desapareceu por volta de 1920. Naquela época, a área em que Eliane morava era mais uma entre tantas que utilizavam mão de obra semi-escrava dos índios. O plantio de algodão era administrado por neo-colonizadores ingleses dos arredores de Rio Tinto, na Paraíba. Os indígenas que não aceitassem as condições impostas eram assassinados e desaparecidos, além de terem suas famílias perseguidas.
Foi fugindo dessa situação que a família de Eliane se mudou para o Rio de Janeiro. A cultura ancestral do povo potiguara foi mantida pela avó Lourdes, que repassava os costumes através de histórias que contava.
Com sete anos, Eliane aprendeu a ler e escrever. Lia as cartas que a avó recebia e escrevia as respostas. Durante a infância e a adolescência, Eliane aprendeu com a oralidade de seu povo e com os ensinamentos da escola. O estudo levou a índia a escrever suas próprias histórias, e levar a luz às histórias que foram invisibilizadas.
A formação e a transmissão de Eliane Potiguara
Eliane Potiguara formou-se em letras e educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e se especializou em educação ambiental pela UFOP. Em dezembro de 2021, recebeu o título de doutora “honoris causa” pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Suas conquistas foram apoiadas pelas mulheres de sua família, que não tinham sido alfabetizadas. Por causa da condição humilde e da etnia de sua família, Eliane percebia e sentia a dor do racismo, especialmente contra sua avó. Essa mesma avó, que batalhou para que a neta se formasse, realizou o sonho de vê-la se tornar professora.
Mas Eliane não parou por aí. A escritora foi responsável pela criação da primeira organização de mulheres indígenas no Brasil: o GRUMIN, o que lhe rendeu uma nomeação pelo Conselho das Mulheres do Brasil para as “Dez Mulheres do Ano de 1988”.
Trazendo sua história na bagagem, Eliane Potiguara sempre se posicionou em defesa dos direitos humanos. Sua atuação se fez e faz presente em congressos, seminários, cursos, encontros, conferências, assembleias, e é claro, na sua escrita.
Na ONU, participou durante anos da elaboração da “Declaração Universal dos Direitos Indígenas”. Nas letras, Potiguara publicou livros, participou de coletâneas, além de ter criado o primeiro jornal indígena. Em 1995, Eliane Potiguara foi à China, no Tribunal das histórias não contadas e direitos humanos das mulheres da ONU, e lá narrou a história de seu povo que foi obrigado a emigrar das terras paraibanas na década de 1920 por ação violenta dos neo-colonizadores.
A história que antes havia sido invisibilizada foi narrada, e também escrita. “A Terra é a Mãe do Índio“, de 1989, fala sobre a cultura e o cotidiano indígena, mas também denuncia a violência empregada contra os povos nativos de nossa terra. A obra foi premiada pelo Pen Club da Inglaterra. Na mesma época, o Rota66 de Caco Barcelos, apontou o nome de Potiguara na lista dos “Marcados para Morrer”. A lista também foi anunciada no Jornal Nacional da Rede Globo, e denunciava os esquemas que violavam os direitos humanos e indígenas. Eliane não se rendeu às ameaças.
“Akajutibiró, Terra do Índio Potiguara”, publicado em 1994, é uma cartilha de alfabetização para adultos e crianças. A obra contou com apoio da UNESCO e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
“Metade Cara, Metade Máscara“, de 2004, conta a história de amor de um casal indígena, abordando relações humanas, identidade, ancestralidade, família e mulher. O livro reúne crônicas e poesias que narram as memórias da escritora e as experiências com as mulheres de sua vida.
Em “A cura da Terra”, de 2015, Eliane Potiguara conta a história de Moína, uma menina de origem indígena muito curiosa, que gosta de se aconchegar nos braços da avó para ouvir histórias. Nessas histórias, Moína conhece a sabedoria de seus ancestrais, o sofrimento pelo qual seu povo passou, e outras descobertas. Moína, em sua vasta curiosidade, tenta entender o sentido da vida.
Entre os livros de literatura juvenil de Potiguara, além de “A cura da Terra”, estão “O Coco que Guardava a Noite” de 2004 e “O Pássaro Encantado” de 2014.
Em “O Coco que Guardava a Noite”, Eliane mergulha na ancestralidade indígena apresentando Boiuna, a Grande Serpente; o índio Aruanã e a história do côco que guarda a noite. A história faz parte da lenda karajá.
Em “O Pássaro Encantado”, Eliane Potiguara traz mais uma vez a figura mágica e poderosa da avó.
Já foi comentado que a avó de Eliane era muito sábia e conhecia muitas histórias da ancestralidade potiguara, mas ela também conhecia muito sobre um outro assunto: a cura. Tanto a avó de Eliane quanto sua mãe, eram grandes conhecedoras de ervas. Misturando ervas, cascas, folhas e outras substâncias que a natureza dá, a avó de Eliane fabricava todos os remédios que a família precisava.
Por toda sua obra e empenho nas causas indígenas, Eliane Potiguara obteve diversos reconhecimentos. Foi nomeada Embaixadora Universal da Paz em Genebra, foi indicada pelo Círculo Universal dos Embaixadores da Paz, da ONU, para defender a paz no mundo. Em 2005, foi indicada ao projeto Internacional “Mil mulheres ao Prêmio Nobel da Paz”. Em 2014 recebeu o título de Ordem do Mérito Cultural, na classe “Cavaleiro“, concedido pelo governo brasileiro em reconhecimento às contribuições prestadas à cultura do País.
A Mulher Indígena
“Eu tive essa iluminação de ter essas pessoas na minha vida. Minha mãe, minha avó são pessoas extremamente humildes, extremamente pobres, mas me deram uma uma educação, me ensinaram uma cultura milenar, uma cultura extraordinária que perpassa pela ancestralidade indígena, e eu me sinto muito gratificada por isso, porque em cima disso é que eu conto as minhas histórias, minhas lendas, os meus cânticos os meus poemas, as minhas críticas literárias.”
Eliane Potiguara
A importância das mulheres nas histórias de Eliane Potiguara é evidente, tanto em suas criações quanto em sua vida. As duas histórias, as da escritora e as da mulher indígena, se misturam, e em ambas existe a importância essencial da mulher. Mulheres guerreiras, que precisam fugir de suas terras para proteger suas famílias; mulheres mães, que cuidam, ensinam e curam, mulheres trabalhadoras que saem para uma jornada de trabalho, e mesmo chegando cansadas em casa, ainda encontram tempo para ensinar mais uma história, porque elas também são, sobretudo, detentoras e transmissoras do saber e da base ancestral do feminino.
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