Há cem anos atrás ocorria no Brasil um dos eventos, ou talvez o evento artístico mais importante da história brasileira: A Semana de Arte Moderna de 1922. O evento ocorreu no Teatro Municipal da cidade de São Paulo nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro, comemorando também o Centenário da Independência do Brasil, trazendo diversas manifestações artísticas incluindo dança, música, poesia, pintura, escultura e palestra.
A proposta da Semana de 22 era promover uma renovação da linguagem artística, acentuando a busca pela experimentação e pela liberdade de criação, a fim de romper com os padrões artísticos pré-estabelecidos do passado.
Entre os artistas participantes da Semana de 22 temos apenas três mulheres: a pianista Guiomar Novais, e as artistas plásticas Zina Aita e Anita Malfatti. Tarsila do Amaral, outro nome importante do modernismo na época, não participou do evento pois estava em Paris na ocasião.
Comemorando o centenário da Semana de 22, o Mulheres de Luta relembra a trajetória dessas três artistas e a participação delas na Semana de Arte Moderna.
A prodigiosa pianista Guiomar Novaes
Guiomar Novais nasceu em 28 de fevereiro de 1894, na cidade de São João da Boa Vista e faleceu em São Paulo em 1979.
Com incentivo da mãe e tendo como exemplo as irmãs mais velhas, começou a tocar piano aos 4 anos de idade, e logo começou a se apresentar nas festas escolares.
Uma curiosidade sobre Guimar é que ela era vizinha de Monteiro Lobato, que mais tarde exerceria influência para a realização da Semana de 22, mesmo a contragosto do escritor. Lobato foi inspirado pelas feições de Guiomar para criar a personagem Narizinho do Sítio do Pica Pau Amarelo.
Aos 7 anos, Guiomar Novaes já sabia ler as notas musicais e se tornou aluna de Eugênio Nogueira e do mestre italiano Luigi Chiaffarelli. Sua primeira apresentação profissional ocorreu em 1908 no Rio de Janeiro, mesmo ano em que recebeu uma bolsa para estudar no exterior com o mestre Isidor Philipp no Conservatório de Paris. No concurso de admissão ao Conservatório, em 1909, Guiomar com 15 anos de idade conquistou o primeiro lugar, concorrendo com outros 388 candidatos para pleitear uma das 11 vagas.
A pianista retornou ao Brasil em 1914, e logo realizou exibições no Rio de Janeiro, e no ano seguinte no Aeolian Hall, em Nova York, alcançando sucesso e reconhecimento internacional.
A Semana de 22, foi marcada por muita euforia, vaias e algazarras. Um desses momentos ocorreu durante a execução da paródia de Eric Satie da “Marcha Fúnebre” de Chopin, por Ernâni Braga. Guiomar Novaes enviou uma carta aberta aos responsáveis pelo evento:
“Exmos. Srs. Membros do Comitê Patrocinador de Semana de Arte Moderna – Saudações. Em virtude do caráter bastante exclusivista e intolerante que assumiu a 1a festa de Arte Moderna realizada à noite de 13, no Teatro Municipal, em relação às demais escolas de música das quais sou intérprete e admiradora, não posso deixar de aqui declarar o meu desacordo com este modo de pensar. Senti- -me sinceramente contristada com a pública exibição de peças satíricas alusivas à música de Chopin. Admiro e respeito as grandes manifestações de arte independentes das escolas a que elas se filiam, e foi de acordo com este meu modo de pensar que, acedendo ao convite que me foi feito, tomarei parte num dos festivais de Arte Moderna. Com toda consideração, Guiomar Novaes’” (Orsini, 1992, p. 160).
Como a pianista era muito conceituada na época, sua declaração foi considerada como mais uma instigadora das manifestações da plateia. Mas para Guiomar, ao que tudo indica, não era uma tentativa de travar uma briga entre a arte moderna e a arte tradicional. Em sua apresentação, a pianista executou autores de ambos estilos.
Sua crítica era sobretudo contra a intolerância e o exclusivismo. A prova disso foi que em 1972, durante a ditadura, Guiomar foi convidada à comemoração de 50 anos do evento no Teatro Municipal, onde tocaria o mesmo repertório com exceção da “Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro”, de Gottschalk, obra que foi proibida pela ditadura. A pianista compareceu no evento, subiu ao palco e tocou apenas a obra em questão, deixando o teatro sob intensos aplausos.

A esquecida pintora Zina Aita
Teresa Aita, conhecida por Zina Aita nasceu em Belo Horizonte em 1900 e faleceu em 1967. Filha de imigrantes italianos, Zina mudou-se com a família para Itália, permanecendo no país europeu entre os anos de 1914 e 1918, período em que estudou na Accademia di Belle Arti di Firenze tendo como mestre o artista Galileo Chini. Chini influenciou a artista tanto na área da pintura quanto na cerâmica ligada à arte decorativa
A arte de Zina era muito versátil tanto na escolha de linguagens como nas técnicas. Criou obras em óleo sobre tela, desenhos, aquarelas, tapeçaria e cerâmica. Quando retorna ao Brasil, Zina entra em contato com artistas modernistas, incluindo Anita Malfati. Na época, Zina passou a realizar ilustrações para a Klaxon, revista-símbolo do Modernismo paulista. Além do modernismo, Zina também foi influenciada pela Art Nouveau e pelo pós-impressionismo.
No início de 1920, Zina já tinha conquistado certa visibilidade no Brasil, o que a levou a realizar uma exposição individual em Belo Horizonte.
Na Semana de Arte Moderna a mineira exibiu diversas impressões e oito telas que demonstravam especialmente a tendência decorativa da pintora. Em sua obra “Homens Trabalhando”, por exemplo, Zina aposta em um azul vibrante para dar visibilidade ao trabalho da população negra e mestiça brasileira, tema típico do modernismo. A obra teve excelente receptividade do público na Semana de 22.
Apesar da importância da jovem artista na época, sua produção e nome ainda é pouco conhecido e explorado. Após a Semana de 22, Zina Aita realizou uma exposição solo em São Paulo, rendendo boa repercussão de vendas, e anos depois retornou à Itália para se dedicar especialmente à arte da cerâmica.

A precursora do modernismo Anita Malfatti
Anita Catarina Malfatti nasceu em São Paulo no dia 2 de dezembro de 1889, e faleceu em 1964, filha de Betty Krug, norte-americana descendente de alemães, e do engenheiro italiano Samuel Malfatti. Como Anitta nasceu com uma atrofia no braço direito, teve que desenvolver habilidades com a mão esquerda. Estudou no Externato São José, um colégio de freiras católicas, na Escola Americana, uma escola protestante e no Colégio Mackenzie.
Aos 13 anos, quando Anita Malfatti morava na região da Barra Funda em São Paulo, sem saber o que fazer da vida, decidiu se suicidar:
“Um dia saí de casa, amarrei fortemente as minhas tranças de menina, deitei-me debaixo dos dormentes e esperei o trem passar por cima de mim. Foi uma coisa horrível, indescritível. O barulho ensurdecedor, a deslocação de ar, a temperatura asfixiante deram-me uma impressão de delírio e de loucura. E eu via cores, cores e cores riscando o espaço, cores que eu desejaria fixar para sempre na retina assombrada. Foi a revelação: voltei decidida a me dedicar à pintura.”
Após a morte do pai, a mãe de Anita passou a dar aulas de línguas e pintura para sustentar a família. Foi com a mãe que Malfatti aprendeu as primeiras técnicas. Em 1910 foi estudar na Alemanha no ateliê de Fritz Burger e na Academia Real de Belas Artes em Berlim, onde investigava especialmente o expressionismo.
Malfatti volta ao Brasil em 1914 e realiza uma exposição na Casa Mappin, e em 1915 vai para Nova Iorque estudar na Arts Students League e na Independent School of Art com Homer Boss, grande nome do expressionismo na época.
De volta ao Brasil em 1917, Anita Malfatti realizou uma exposição com 53 trabalhos que incluíam pinturas, aquarelas e gravuras, acentuando a sua influência expressionista. No entanto, a arte de Anita Malfatti foi muito impactante para os padrões da época.
A repercussão da exposição foi intensa. Monteiro Lobato, que era crítico de arte do jornal O Estado de São Paulo, publicou o artigo A Propósito da Exposição Malfatti, também conhecido por “Paranóia ou Mistificação?”, criticando com veemência a arte moderna e as obras da artista.
A crítica do escritor foi o estopim para o movimento modernista no Brasil, levando nomes como Mário de Andrade e Oswald de Andrade a agirem em defesa do movimento artístico. Nesse momento surge a ideia da realização da Semana de Arte Moderna.
Anita Malfatti, no entanto, ficou muito abalada com a crítica do escritor. A pintora entrou em depressão, ficou um ano sem pintar, e quando retornou às aulas tentou uma arte mais convencional, retratando sobretudo a natureza-morta. Nessa época, Anita também começa uma amizade com a pintora Tarsila do Amaral
Com incentivo dos amigos, Anita Malfatti participou da Semana de Arte Moderna de 1922 apresentando cerca de 20 obras, entre elas o conhecido “O homem amarelo”. Anita Malfatti é considerada a precursora do modernismo no Brasil e uma das artistas mais conhecidas do gênero.


Referências
LEITE, Edson. Música na Semana de 22: tradição e ruptura na cidade de São Paulo. REVISTA USP • São Paulo • n. 94 • p. 59-70 • JUNHO/JULHO/AGOSTO 2012.
AJZENBERG, Elza. A semana de arte moderna de 1922. Revista de Cultura e Extensão USP, 7, 25-29. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/rce/article/view/46491/50247>. Acesso em 14 de janeiro de 2022.
SEMANA de Arte Moderna. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento84382/semana-de-arte-moderna>. Acesso em: 14 de janeiro de 2022.
História da Arte e Modernismo no Brasil – Caso do “desaparecimento” de Zina Aita. Fundação Clóvis Salgado. Alexandre Ventura. Disponível em: <https://fcs.mg.gov.br/historia-da-arte-e-modernismo-no-brasil-caso-do-desaparecimento-de-zina-aita/>. Acesso em 14 de janeiro de 2022.
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