As histórias narram fatos, ações e experiências vividas por alguém. Por outro lado, a ficção narra fatos, ações e experiências que, embora sejam “inventadas”, tem sua inspiração na realidade e são vividas por uma personagem.
O evento que ocorre é sempre interessante, mas tudo se amplia quando pensamos primeiramente em quem está vivenciando. É a partir da personagem que viajamos pela história, compartilhando seus sucessos, fracassos, emoções e formas de perceber o mundo. São as personagens que dão vida às histórias.
Assim, cada personagem é também um universo que guarda inúmeras outras narrativas dentro de si. Podem ser histórias vivenciadas no coletivo ou forjadas no ambiente interno e vasto que cada personagem possui.
No episódio “Personagens” da série Literatura, Substantivo Feminino, escritoras narram suas experiências ao construírem suas personagens, relatando também o que é ficcional e o que é fruto da realidade em suas criações.
Nesse terceiro episódio, nosso encontro é com Lilian Fontes, Alice Ruiz, Conceição Evaristo, Miriam Alves, Lucia Bettencourt, Beatriz Bracher, Nélida Piñon e Carola Saavedra, que dividem conosco um pouco dos seus processos de trabalho sobre a construção das personagens de suas obras.
Confira o trailer do terceiro episódio “Personagens” da série “Literatura, Substantivo Feminino”!
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De Onde Surgem as Personagens?
“Eu não invento a partir de nada, eu invento sempre a partir da vida. Por isso até um pouco desse termo escrevivência.”
Conceição Evaristo
“Escrevivência”, termo cunhado por Conceição Evaristo, se empenha em trazer uma escrita que nasce das lembranças, das experiências e do cotidiano da própria autora. Essas lembranças não são apenas suas, mas também dos negros e negras de nosso país.
Nesse aspecto, suas memórias e vivências se relacionam de forma muito íntima com as histórias de milhões de pessoas que vivenciaram, de alguma forma, experiências semelhantes às que a escritora retrata.
Com os ouvidos atentos, as conversas ouvidas também recheiam as personagens de Conceição Evaristo, o que nos coloca uma reflexão: até que ponto uma obra é ficcional ou não? Se as personagens construídas surgem das vivências do cotidiano, onde está o limite entre a criação ficcional e a abordagem da realidade?
Para Alice Ruiz esse limite também é tênue. Mesmo quando a escrita é de uma obra biográfica, o olhar de quem escreve já altera, de certa forma, a personagem real.
“A gente não escreve durante os eventos que nos provoca a inspiração, é sempre depois. Então, é sempre traduzido de alguma forma, é sempre interpretado de alguma forma. Já não é mais o fato, já não é mais o acontecimento, é sempre uma inspiração.”
Alice Ruiz
Para Alice Ruiz, a parte ficcional está justamente na escrita, no processo de construir as personagens a partir dessas vivências.
“O poema que quer se fazer ele extrapola a biografia e ele toma a forma dele mesmo (…). Eu acho que o poema é uma entidade. Ele toma a forma dele independente da biografia.”
Alice Ruiz
A partir dessa perspectiva, observamos como ocorre a experiência de escrita para essas escritoras. Cada uma delas têm seus métodos de trabalho e maneira de escrever, portanto, fará emergir seus personagens de uma forma diferente.
Seus olhares são diferentes, bem como seus processos, mas eles se encontram nas inúmeras possibilidades de fazer surgir um personagem.
A Escrita na Construção das Personagens
A forma de entender o mundo, bem como o processo de trabalho textual, se unem ao olhar das escritoras a fim de permitir que o curso da escrita siga seu fluxo.
Para Beatriz Bracher, a construção da personagem é intensificada pela escrita à medida em que ela se empenha em retratar a fala das personagens, seu ritmo, vocabulário e a maneira que cada personagem tem de se expressar.
“No livro Antônio são três personagens, eu entrevistei algumas pessoas, eu queria muito que cada personagem tivesse um vocabulário diferente, em função da geração, em função do estudo, e mesmo a personalidade de cada personagem. Em geral, em qualquer livro, ela é dada não tanto pelo que você fala do personagem, mas sobre a fala, como o personagem fala, qual vocabulário, qual gramática dele.”
Beatriz Bracher
É nesse ponto que a vivência se une ao ofício e revela tanto a personagem como a escritora.
“A Lúcia obviamente está sempre presente na minha obra porque foi a Lúcia que escreveu, embora eu nem conheça essa Lúcia que está escrevendo tudo, porque a gente se descobre na escrita. De repente você encontra coisas ali sobre você mesma que você nem se dava conta que existiam.”
Lúcia Bettencourt
À medida em que Lúcia Bettencourt escreve, a personagem vai surgindo, assim como surge também uma parte dela que ela não reconhecia. A escritora também retoma as lembranças da infância para algumas de suas narrativas, incluindo um encontro com sua avó.
Miriam Alves também trouxe a avó em uma de suas narrativas, e em seu processo de construção dessa personagem, ela reconhece os elementos ficcionais e não ficcionais.
“Aquela minha personagem (…) é lógico que não é a minha vó, e nunca vai ser. Mas ela tem muita doação de pele, assim como todas as outras personagens. É uma doação de pele de quem é compatível.”
Miriam Alves
É nessa compatibilidade que as escritoras encontram seus personagens. Inspiradas pela realidade que as cerca, a imaginação se expande e dá vida a um ser ficcional capaz de trazer a carga da realidade, permitindo que leitoras e leitores se identifiquem ou reconheçam os padrões no seu cotidiano.
Além da vivência de experiências passadas com pessoas próximas ao convívio, o ambiente externo, em si, traz inúmeras personagens que também se conectam com as vivências cotidianas das escritoras.
É o caso de Conceição Evaristo, que aborda situações recorrentes na vida social. Embora ela não tenha passado pessoalmente por essas experiências, elas fazem parte do cotidiano de milhões de brasileiros.
“Qualquer pessoa das periferias sabe que as crianças morrem de bala perdida. Então, você ouve o noticiário da criança que morre de bala perdida e você escreve Zaira. (…) É sempre prestando atenção na vida. É sempre se condoendo com a vida, sempre se emocionando com a vida, que surge a literatura.”
Conceição Evaristo
A Observação para a Construção de Personagens
“Se eu desenvolvo uma personagem feminina, eu posso me aproximar mais dela, quer dizer, eu posso me aproximar mais do núcleo desse personagem, e quando eu desenvolvo um homem eu me aproximo, mas posso me aproximar até um determinado ponto, a partir desse ponto é puramente intuitivo.”
Carola Saavedra
Essa “aproximação” da qual fala Carola Saavedra, insere a escritora no campo das possibilidades.
A vivência com quatro irmãos lhe permitiu uma aproximação com o universo masculino, o que influencia na forma como ela vê, sente e retrata esse universo, mas também abre espaço à sua intuição.
É a vivência, aliada à imaginação e à intuição, que permite a qualquer mulher construir um personagem masculino, bem como um feminino, ou ainda criança, jovem, adulto ou idoso.
Cada escritora mergulha em outros universos de uma forma particular, mas o processo de escrita em si, bem como a compreensão desse processo, também é particular e, portanto, único.
Esse é um exercício estimulante para Lilian Fontes, por exemplo, que aprecia especialmente o processo de pesquisa ao construir suas personagens.
“O meu interesse na escrita é justamente esse, é poder penetrar em mundos que não são o meu mundo.”
Lilian Fontes
Alteridade na Construção de Personagens
“Eu escrevo muito sobre as outras pessoas. As pessoas são a minha fonte de inspiração, mas não pelo que elas provocam em mim exatamente, e sim pelo que eu aprendo observando. A forma como todos nós somos feitos, mas como nós nos desenvolvemos, a forma como nós enfrentamos as coisas. O jeito de ser da humanidade é uma inspiração forte pra mim.”
Alice Ruiz
A escrita permite a criação de uma obra ficcional embasada em vivências, experiências e memórias de quem escreve, mas elas encontram sua interseccionalidade na vida real.
Não são apenas as memórias pessoais as utilizadas na construção de uma personagem.
O processo de construção de personagens traz à escritora Nélida Piñon a oportunidade de explorar um outro mundo, a partir do exercício da imaginação.
Ao embarcar em um universo completamente diferente do seu, além da pesquisa, Nélida Piñon reforça a importância da empatia, de se colocar efetivamente no lugar da personagem, independentemente de quem ela seja.
“Eu acho muito importante que o autor pense “eu sou ele”, “eu sou você”, “eu sou um homem”, “eu sou uma mulher”. Eu me sinto assim. É aquela frase que eu digo muito do Proteu “que você tem que assumir todas as formas”, eu não posso ser a escritora que eu desejo ser se eu não for mulher, se eu não for homem, se eu não for criança, se eu não sentir as vibrações, as modalidades, afetivas dos bichos.”
Nélida Piñon
O exercício da alteridade na literatura dessas autoras se manifesta na construção de seus mais diferentes personagens, sejam embasados em pesquisa, na observação de seus modos particulares, ou na imaginação que possibilita o surgimento de uma nova vida.
Como percebemos, a ficção e a realidade se misturam no processo de criação das personagens. Elas podem surgir da pesquisa como ocorre com Lilian Fontes, da observação atenta de Alice Ruiz, das memórias de Conceição Evaristo, da doação de órgãos que ocorre no processo de Miriam Alves, do encontro consigo mesma de Lúcia Bettencourt, da atenção ao vocabulário das personagens de Beatriz Bracher, do exercício de se colocar no lugar da personagem que Nélida Piñon realiza e da aproximação intuitiva de Carola Saavedra.
O importante é o impacto que essas personagens provocam no imaginário do leitor.
Saiba mais sobre o processo de construção das personagens dessas escritoras no terceiro episódio, “Personagens”, da série “Literatura, Substantivo Feminino”.
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