Menina, mulher, anciã: a face tríplice da deusa se manifesta na vida das mulheres. Cada face tem suas características, mas isso não significa que, ao passarmos por elas, fiquem no passado. Todas as mulheres possuem as três, tudo é uma questão do momento e da intensidade da manifestação.
Ainda assim, é interessante observarmos esses aspectos para compreendermos a jornada de nossas vidas.
Quando menina, também representada pelo arquétipo da donzela, a liberdade se instaura. A imprevisibilidade do vento rumo ao leste estimula a deusa a sair da sua zona de conforto, buscando através da curiosidade os saberes que vão guiar seu curso. É o início da jornada primaveril, na qual a criatividade atinge seu ápice e o espírito de aventura toma conta.
Já na face da mulher, representada também pelo arquétipo da mãe, outras qualidades se manifestam. O cuidado com o outro, o amor e a responsabilidade para com os seus, ficam em evidência. Mas a mulher não precisa passar pela maternidade para exercer essas qualidades.
O cuidado para com os seres da natureza e com tudo que está a sua volta está na atitude de uma mulher que conforta a outra, na capacidade de crescimento mútuo e na expansão pessoal, espiritual e profissional, em sintonia com a comunidade. Ela abençoa, sustenta, encoraja e ama.
O calor do fogo do verão da face da mãe nos traz abundância e fortalecimento. Podemos dizer que essa é a face mais cultuada da deusa.
Na nossa sociedade, no entanto, não damos o devido valor à terceira face, a da anciã. Vemos muitas pessoas idosas sendo pouco valorizadas e muitas vezes ignoradas na sociedade.
No entanto, é justamente quando nessa face que o feminino encontra sua plenitude e o ápice de sua sabedoria.
A anciã já passou pelas outras faces. Aqui, ela está no auge de sua sabedoria. Ela observa o mundo e já conhece os caminhos.
As representações da anciã são as mais diversas: pode ser a avó que afaga e aconselha. Ela também é o ponto de equilíbrio, é a mulher que se mantém firme mesmo em meio à desordem.
Ela é uma mulher sábia com mais experiência e poder do que a mãe. É generosa e divide o seu conhecimento para que esse contribua às futuras gerações.
Senhora do outono e do inverno, guardiã do conhecimento e do saber, é ela quem nos apresenta as histórias, os mitos e as lendas. Ela nos guia nos caminhos da vida, e também nos guia em nosso encontro com nós mesmas. Ela tem o poder da magia e não tem medo de águas profundas.
No décimo episódio de “Literatura, Substantivo Feminino”, as escritoras falam sobre o processo de “Envelhecer”, compartilhando conosco a face da anciã, momento em que também trazem em si todas as outras faces da deusa.
A Percepção das Mudanças
O processo de envelhecimento na vida das mulheres traz perdas e ganhos. A transformação que fica mais evidente é com relação ao corpo, e as escritoras entrevistadas apontaram suas percepções sobre esse processo.
“Eu acho que envelhecer é difícil, você passa a ser dona de um corpo que não era o teu corpo, quando a sua imaginação ainda é jovem, quando o seu desejo ainda é jovem talvez, mas ao mesmo tempo eu acho que envelhecer, o meu envelhecer não me roubou uma sagacidade, não extraiu de mim a curiosidade, eu tenho uma curiosidade intelectual extraordinária.”
Nélida Piñon
Nélida Piñon, embora perceba as dificuldades de envelhecer a partir das mudanças no corpo, também experimenta uma ampliação das suas capacidades na hora de reagir ou ter que responder ou solucionar uma questão.
“É como se de repente esclareceu o mundo, o mundo que eu vejo já não é tão difícil para mim como já foi.”
Nélida Piñon
A sabedoria adquirida por Nélida Piñon também é observada por Marina Colasanti.
“A idade acho que só me trouxe coisas boas, aceitar o outro fica mais fácil, tentar entender o outro fica mais fácil, a gente tem muito mais conhecimentos do que tinha quando jovem. A gente já fez o percurso, um jovem se pergunta “ai meu Deus, para onde eu vou?”. Então quando você chega na minha idade, você já fez o principal da sua vida, você já criou os seus filhos, você olha e pensa “fui uma mãe direita”, então é muito bom.”
Marina Colasanti
Quando Marina Colasanti olha para trás e observa todo o seu percurso, não há saudade que à prenda ao passado, mas uma felicidade e satisfação pelo que ela realizou e continua realizando.
Com relação ao corpo, a vaidade e o autocuidado permanecem os mesmos, mas com algumas adaptações, como nos explica Conceição Evaristo.
“Eu sou uma pessoa vaidosa, outro dia mesmo eu estava olhando uma foto minha com cabelo belíssimo, pretíssimo, então à medida que você vai amadurecendo, tem que ir procurando novas formas de se compor.”
Conceição Evaristo
Independente da fase da vida, o que Conceição Evaristo reforça é a importância da sedução, algo que está presente em toda e qualquer etapa.
“Eu acho que você pode ser uma criança sedutora, pode ser um jovem sedutor, uma jovem sedutora e se você quiser também pode ser uma pessoa com uma certa maturidade e conservar uma sedução. (…) Eu acho que enquanto você está viva, tem que ter esse compromisso com você mesmo, com a sedução.”
Conceição Evaristo
Lya Luft encara essa etapa da vida com bom humor.
“Então esse pouco de bom humor de encarar a vida é natural, é tão natural ter 80, como foi natural ter 8.”
Lya Luft
O Aprendizado da Maturidade
“A idade tem me ensinado que o que é da gente vem na porta, você tem que lutar também, mas não precisa de você dar rasteira em ninguém, não precisa de você perder muito tempo com disputa.”
Conceição Evaristo
Conceição Evaristo também reconhece outros aprendizados que vieram com a maturidade.
“Eu não me encanto com o canto da sereia, eu tenho todo o cuidado onde eu estou pisando, com quem eu estou falando. (…) Se eu cheguei até agora, aos 71 anos, e não tive que abrir mão da minha dignidade, não é hoje que vou abrir mão da minha dignidade. Isso me deixa muito à vontade para dizer o que eu quero.”
Conceição Evaristo
“Perder o tempo” acaba sendo naturalmente um dos temas mais relevantes nessa fase. O aprendizado já demonstrou os caminhos possíveis. Elas já sabem quais escolhas trazem mais desgaste de tempo, e quais não. O tempo passa a ser prioridade.
A maturidade ensinou para Alice Ruiz a ter uma mente ainda menos preocupada.
“Acho que a idade me livrou de um monte de bobagens. Eu acho que a gente se preocupa. Mais jovem, a gente se deixa um pouco, alguns mais outros menos, se conduzir muito por pressões externas e isso gera preocupações que muitas vezes são absolutamente desnecessárias. (…) Eu acho que a idade tira muito desse, não sei se é a idade ou a proximidade da morte ,que faz a gente realmente otimizar e parar de perder tempo com bobagens.”
Alice Ruiz
Para Alice Ruiz, quando se é mais jovem há mais preocupações, muitas vezes por pressões externas. Para ela, a idade otimizou o tempo, evitando com que ela o perca com coisas desnecessárias.
O aprendizado de Lya Luft está especialmente no amadurecimento de suas crenças e filosofia de vida.
“Então eu acho que a maturidade e a velhice me trouxeram um pouco mais filosofia de vida. Você sabe que é assim e você tem que ter alguma crença, alguma fé, Eu acredito que o espírito humano continua, não sei como.(…) Acho que a maturidade me trouxe mais tranquilidade.”
Lya Luft
A Passagem do Tempo e a Saudade
“A única coisa ruim que eu acho com a passagem do tempo são as perdas. Um outro dia eu estava vendo uma agenda de telefone de 5, 10 anos atrás, que eu fui procurar uma coisa. Um monte de gente amigos meus que já tinham morrido, essa é a parte chata, a parte das perdas das pessoas.”
Lya Luft
Lya Luft não se importa com as transformações do corpo, mas com a perda de pessoas que o tempo proporciona. Na velhice, o tempo fica cada vez mais precioso e Ana Maria Machado demonstra isso.
“Cada dia é um presente, que bom que eu ainda estou aqui, que bom que bem ou mal a cabeça está funcionando, não sei por quanto tempo. Essa coisa que fica assim, essa ideia da precariedade e de que o tempo é um presente da vida que eu quero aproveitar muito.”
Ana Maria Machado
Conforme o tempo avança, a capacidade da anciã, de olhar para dentro e recordar, também ocorre, mas cada escritora lida com esse aspecto de uma forma.
Lúcia Bettencourt não esconde suas saudades.
“Eu sinto saudade do meu marido, isso eu sinto muita saudade, o meu marido era engraçado que ele perguntava para mim “você não queria voltar no tempo, não? ”. E aí eu dizia para ele “voltar no tempo, para que? ”. Para ter que passar por tudo isso de novo, não, eu não queria voltar no tempo.”
Lúcia Bettencourt
Não querer voltar ao passado, para Lúcia Bettencourt, não apaga suas saudades. Mas ela aceita o tempo como uma boa amiga.
Marina Colasanti também deixou para trás o que passou.
“Eu não tenho saudade de nada, muita gente na minha idade tem saudade. “Ah, quando era jovem…” Eu não tenho saudade de nada. Eu não sou caranguejo, não quero andar para trás.”
Marina Colasanti
Confira esses e outros comentários de Marina Colasanti, Conceição Evaristo, Nélida Piñon, Ana Maria Machado, Lya Luft, Lúcia Bettencourt, Alice Ruiz em “Envelhecer”, décimo episódio da série “Literatura, Substantivo Feminino”.
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