Grandes epidemias e pandemias marcaram a história da humanidade e dizimaram diferentes povos, atingindo o homem da Antiguidade à fase contemporânea. Em 430-427 a.C. a Peste de Atenas causou a morte de cerca de 35% da população. A Peste Negra (1347-1353), ou peste bubônica, dizimou cerca de 1/3 da população europeia, e com o passar dos séculos outras epidemias e pandemias também provocaram milhares de mortes. Mas também com o passar dos séculos, aprendemos a lidar com elas a partir da ciência.

Eu diria que a história da humanidade, se quisermos nos concentrarmos nesse conceito, é um pouco as histórias das epidemias, porque se nós formos analisar os últimos 2.500 anos e começarmos a analisar as epidemias que ocorreram no império romano, por exemplo, as epidemias que ocorreram no mundo grego, as primeiras epidemias que têm registro, algumas nós temos registros muito pouco preciso. Mas assim, deste a Peste Antonina, que ocorreu em Roma, que provavelmente era varíola e várias que foram ocorrendo ao longo dos séculos, até as grandes pestes, as chamadas pestes negras na segunda metade do século 14, foram um enorme aprendizado. Foram um enorme aprendizado, inclusive, interessante, porque eu sempre tenho dado esse exemplo de como os governantes podem se comportar de maneira, digamos, não só solidária, mas eficiente com a população. E um dos exemplos clássicos, que podem se comparar com o mal comportamento de alguns governantes também na pandemia atual, foram os governantes italianos da área da Lombardia, que nós sabemos que na Covid-19, devastou a Lombardia na área de Milão. Naquela ocasião, no final do século 14, os governantes de Milão, na época, os grandes Duques de Visconde, pessoas que a história chama de Senhores naquela época, foram inteligentíssimos. Eles viram que a pandemia estava se aproximando da região e reuniram a aristocracia e povo juntos, emanados e fizeram cinturão sanitário na cidade e a epidemia não entrou em Milão. Milão foi protegida da peste. Foi a cidade menos comprometida.
Margareth Dalcolmo
Então, isso demonstra que as medidas ditas hoje não farmacológicas, isto é, comportamento pessoais, uso de máscaras, todo mundo se lembra daquela máscara, aqueles chapéus, eram pela pestilência do ambiente. Não tinha nenhum saneamento, nada. Foram várias epidemias que ocorreram na segunda metade do século 14. E aquilo gerou não só uma literatura riquíssima, a começar pelo Decameron, pelo Bocaccio e vários registros da literatura, mas gerou o renascimento. Então, assim, o homem é capaz de, diante das catástrofes mais graves, gerar alguma coisa boa, né? Então, assim, nós não podemos perder completamente nossa esperança. Eu sou muito obstinada. Eu continuo acreditando no ser humano.
Margareth Dalcolmo
A humanidade passou por um período de sofrimento físico, psicológico e material, e essa experiência já deixou sequelas em quem se salvou de um destino ainda mais cruel.
Aprendemos sobre a importância do SUS, e apesar de faltar incentivo às políticas de saúde baseadas em ciência, os profissionais da saúde, especialmente os da linha de frente, enfrentaram a catástrofe, se expuseram ao risco e fizeram o melhor que puderam dentro das possibilidades disponíveis. Isso tudo é razão mais do que suficiente para valorizar o SUS, os profissionais de saúde, bem como seguir as orientações da ciência.
Felizmente o histórico de vacinações no Brasil pesou a favor da ciência, apesar das campanhas de desinformação.
Eu acho que em relação a esse preparo da nossa população, do ponto de vista, eu diria, antropológico, sociológico, enfim, social mesmo, eu acho que nós fomos apanhados de uma maneira muito despreparada no Brasil para enfrentar a pandemia e eu acho que o primeiro aprendizado que a pandemia da Covid-19 deixa para o Brasil é que isso nunca mais pode acontecer, nunca mais. Nós temos que nos preparar. Essa não será a última epidemia de nossas vidas, haverá outras, seguramente e o Brasil não pode ser apanhado. Desde o início, ficou claro e eu disse isso e vários colegas também disseram, que a nossa grande arma seria o nosso SUS e foi. Em todo seu desmantelamento, esvaziamento de recursos humanos, tudo o que nós sabemos foi o SUS que de certa maneira, segurou. E a segunda arma era o distanciamento físico mesmo, porque a gente sabia desde o início que uma doença de transmissão respiratória e aguda com essa taxa de transitabilidade, desde o início, estava claro para todos que nós precisaríamos usar essas duas armas poderosas. Então, eu acho que esse foi o grande aprendizado.
Margareth Dalcolmo
O que chama atenção é a diferença social de como as coisas ocorreram no Brasil. O Brasil teve uma letalidade muito alta, muito acima do que seria esperado para um país como o nosso. E isso, de alguma maneira, reflete a desigualdade social no Brasil. Quer dizer, a mortalidade foi maior entre os mais pobres. Aliás, isso aconteceu também em países ricos, como os Estados Unidos, onde não tem SUS, devo dizer. E por essa razão, quem não teve condições de ir ao hospital, morreu sem assistência, como nós sabemos. Então, no Brasil, seguramente, é muito trágico que nós vejamos que populações muito desvalidas, com pouco acesso aos serviços de saúde ou populações mais vulneráveis, como por exemplo, ocorreu em áreas indígenas no Brasil. Então, historicamente, a Covid-19, na verdade, reflete essa desigualdade social histórica do Brasil, que tem que gerar necessariamente, um aprendizado para que possamos enfrentar futuras epidemias com um pouco menos de despreparo, eu diria.
Margareth Dalcolmo
O Brasil já tem uma tradição de mais de 200 anos com a vacina. Em 1804, a vacina contra a varíola chegou ao país. 30 anos depois a imunização contra a varíola se tornou obrigatória, fator decisivo para a superação da doença.
Entre 1900 e 1901, foram fundados o Instituto Soroterápico do Rio de Janeiro, hoje Fiocruz; e o Instituto Serumtherápico, hoje Instituto Butantan.
Em 1904 ocorreu a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, em oposição à obrigatoriedade da vacinação contra a varíola. Nem por isso a vacinação parou. Em 1927, começou a vacinação da BCG contra a tuberculose, anos mais tarde a febre amarela urbana foi eliminada também pela vacina.
Desde 1973 o Brasil possui o PNI, Plano Nacional de Imunizações e o seu primeiro calendário básico data de 1977. O Zé Gotinha, nasceu em 1986 e em 1995, substituímos a vacina monovalente contra o sarampo pela tríplice viral, que imuniza contra o sarampo, a caxumba e a rubéola. Vacinas contra o tétano, a gripe, a catapora entre outras foram incluídas na vacinação no Brasil. Com a Covid-19, no entanto, a vacinação deu um salto científico.

Em relação às vacinas, eu diria que as vacinas para Covid-19, ao meu ver, são a maior descoberta na área biomédica das últimas duas décadas, pelo menos. Porque se nós considerarmos que uma vacina tradicionalmente pode levar até dez anos para ser colocada em prática de uso clínico, em menos de um ano, mais de 100 grupos pesquisando nos cinco continentes, sem burlar nenhuma etapa metodológica nem eticamente, terem conseguido criar plataformas novas, resgatar plataformas antigas que haviam sido testadas para outras doenças, como Dengue, Chikungunya, Ebola e não funcionaram. E resgatar todo esse conhecimento e produzir vacinas a ponto de serem usadas em menos de 1 ano, isso é algo extraordinário. E não há dúvida, os mais céticos, os mais, digamos, que reagiram contra a ciência, que fizeram discursos nocivos à sociedade, como nós sabemos que houve, mas que graças a Deus não contaminaram tanto os brasileiros, porque nós temos uma tradição muito incorporada na cultura brasileira de acreditar nas vacinas, ao contrário de outros países, mesmo países desenvolvidos. Hoje nós vemos países como a França, imagina, o berço do iluminismo, você tem 35% da população que não quer se vacinar ou a Alemanha, que está jogando vacina fora, porque está perecendo.
Margareth Dalcolmo
Então, as vacinas foram uma descoberta extraordinária, porque elas salvam vidas. O que está controlando hoje as mortes e os casos graves de Covid-19, não há dúvida que é as pessoas estarem vacinadas. O que não é aceitável, com essa descoberta extraordinária a qual eu me referi, é esse apartheid vacinal, essa desigualdade. De novo o mundo e a sua desigualdade iníqua estão mostrados na questão das vacinas. Não é possível que o mundo tenha 62% da população do planeta vacinada e que isso se distribua de uma maneira tão desigual. Então, se o Brasil tem hoje 80% da população vacinada com duas doses, nós temos gente aqui pertinho, tem o Haiti, aqui perto de nós, que não tem 10% da população. Países africanos que não tem nem 5%. Então, essa dinâmica da desigualdade de novo nos deixa muito constrangidos frente a essa extraordinária descoberta científica.
Margareth Dalcolmo
Eu acho que o Brasil em relação a esse momento presente, nesse corte atual e a perspectiva de futuro em relação à pandemia, eu acho que o Brasil conseguiu com todas as adversidades, com todos os erros cometidos, todas as tensões desnecessárias, sob as quais nós convivemos, a falta de uma coordenação homogênea centralizada, uma tensão permanente entre o discurso oficial e o discurso da comunidade acadêmica brasileira, que aliás, foi muito presente, consistente, pujante, com tudo o que nós sabemos. Eu acho que nós conseguimos uma coisa boa, resgatando a tradição brasileira de acreditar nas vacinas. Primeiro, os dois institutos brasileiros públicos de grande porte como o Butantan e a Fiocruz foram capazes de produzir vacinas, então, hoje, através da Fiocruz, onde eu trabalho, o Brasil é um país autônomo em vacinas para a Covid-19. A Fiocruz tem perfeita capacidade de produzir de 25 a 30 milhões de doses por mês, o que daria perfeitamente autonomia para o Brasil e eventualmente até de colaboração com nossos países vizinhos. Então, isso foi um efeito extraordinário. Eu acho inclusive que isso dá uma tranquilidade para nós em relação a uma eventual necessidade de vacinar ou fazer novos reforços nos próximos meses ou no próximo ano.
Margareth Dalcolmo

Apesar de ter feito parte de círculos de amizade que incluíam imortais da academia brasileira de letras, e de seu falecido marido, Cândido Mendes de Almeida (1928-2022), ter sido também um dos integrantes da ABL, Margareth se interessou pela literatura bem antes disso.
Desde menina ela já lia muito, e talvez naquela época ela não imaginaria que lançaria um livro.
“Um tempo para não esquecer”, narra a experiência de Dalcolmo durante a pandemia, das repercussões clínicas, dos impactos sociais e dos esforços da comunidade científica para encontrar vacinas contra a Covid-19. O livro reúne os artigos escritos semanalmente para o jornal O Globo, documentando a visão da ciência sobre a pandemia.
O livro na verdade é uma contribuição que eu pretendo deixar para aqueles que se interessarem. É um livro para leitores leigos, digamos. Um livro que tem muitas informações sobre as histórias das epidemias, sobre a história da pandemia da Covid-19 e muitas relações literárias que fazem sempre um estilo que eu tenho de registrar aquilo que eu escrevo. Não é um artigo médico, naturalmente. Então, no livro, na verdade, eu reuni todos os artigos que eu publiquei com alguns cortes, por causa do espaço do jornal, que eu publiquei no Jornal O Globo, no qual eu venho escrevendo nos últimos dois anos. Então, eu editei os arquivos originais e o livro é isso: um traço cronológico desde o início da pandemia, porque eu participei desde o primeiro momento, assessorei o grupo do Ministro Mandetta, no início de março de 2020 e todo esse registro, eu pude fazê-lo até o final do ano passado. Então, eu brinco que o meu livro é Pré-Omicron. Agora, eu precisarei escrever uma edição revisada Pós-Omicron, certamente.
Margareth Dalcolmo
Então, escrever o livro foi uma experiência extremamente prazerosa para mim. Não apenas porque eu gosto muito de escrever. Eu sempre escrevi muito. Eu anoto tudo que eu costumo fazer, que eu costumo ouvir. Então, assim, isso vai juntando, vai reunindo muitas informações de natureza factual e algumas reflexões que eu tenho como alguém que pensa literariamente de certa maneira. Não só a experiência médica, mas a experiência humana, que é aquela que nos fascina, né?
Margareth Dalcolmo
Margareth Dalcolmo é membro do Expert Committee on the Selection and Use of Essential Medicines, da Organização Mundial da Saúde, um grupo de 18 peritos que fornece recomendações à OMS quanto à aprovação de fármacos essenciais. Mas, para fazer recomendações ao público, Margareth não precisa de um convite a um grupo de membros, seu histórico de trabalho e pesquisa falam por sí. A orientação para o público, no que concerne ao combate à pandemia da Covid-19, sempre foi a mesma: o uso de máscaras, o distanciamento social e a vacinação.
A maior parte da população atendeu ao pedido, mesmo com os negacionistas da vacina. Dalcolmo não desistiu de continuar levando informação científica ao público geral.
O reconhecimento de seu trabalho foi acentuado com prêmios e honrarias. A primeira dose de Astrazeneca coproduzida pela Fiocruz foi aplicada no braço da pneumologista, um símbolo forte para lembrarmos que lutar pela vida e pela ciência, tem que valer a pena.

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