“Mesmo em casa, sem sair da minha Taubaté, menina bem pequena, eu já ensaiava os meus riscos. Gizava, debuxava desenhos intonsos, fazia figuras. Minha mãe, que era um espírito muito inteligente e muito lúcido, cedo compreendeu o meu pendor pela pintura e, na proporção que as circunstâncias permitiam, tudo facilitava para seu desenvolvimento e perfeição.”
Georgina de Albuquerque
Em 1822, o Brasil comemorava a independência do Brasil. 100 anos depois Georgina criou a Sessão do Conselho de Estado, uma obra que retrata a Independência, ao mesmo tempo em que acentua a importância da mulher na sociedade. Em 1922, ano de criação da obra, ocorria também a Semana de Arte Moderna em São Paulo, e embora Georgina não estivesse participando do evento, a perspectiva de Georgina se alinhava ao pensamento moderno.
Após duzentos anos da Independência e cem anos da semana de 22, o Mulheres de Luta apresenta a trajetória da artista Georgina de Albuquerque e as repercussões de sua obra, a fim de refletirmos também sobre o Brasil de hoje.
A arte de Georgina de Albuquerque
Georgina Moura Andrade de Albuquerque nasceu em Taubaté no dia 4 de fevereiro de 1885 e faleceu em 29 de agosto de 1962 no Rio de Janeiro, aos 77 anos.
Desde criança já sentia que nasceu para pintar, enquanto crescia rodeada pelas “cenas pitorescas do viver brasileiro de então”, como ela mesma relatou. Nessa época, as estradas de ferro e as rodovias não existiam, então o que a inspirava a menina era o Sol, a terra florida e a vida campestre.
Foi na adolescência, aos 15 anos, que conheceu em sua cidade o pintor italiano Rosalino Santoro, que a pedido de sua mãe lhe ensinou as primeiras lições de pintura, tornando-se seu primeiro mestre.
Georgina Albuquerque realizou sua primeira exposição em 1903 na X Exposição Geral de Belas Artes. No ano seguinte, aos 19 anos, Georgina mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ingressou na Escola Nacional de Belas Artes, tornando-se aluna do pintor Henrique Bernardelli.
Na Escola de Belas Artes conheceu o pintor piauiense Lucílio de Albuquerque, com quem se casou em 1906. No mesmo ano, Georgina mudou-se para a França junto ao esposo que foi agraciado com a viagem devido a um prêmio que havia recebido no ano anterior. Em Paris, Georgina formou-se na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts, cujo principal mestre foi Paul Gervais, além de ter feito aulas na Académie Julian com Henry Royer. Georgina e o marido ficaram por cinco anos na França e nessa época, a pintora foi influenciada pelas técnicas impressionistas
Após ter se destacado como a primeira mulher brasileira de sucesso nas rígidas avaliações da Escola de Artes Francesa, Georgina seguiu seu próprio caminho pintando muito e sempre frequentando museus, dividindo seu tempo entre a pintura e o cuidado com os filhos Dante e Flamingo.
Em uma época na qual a pintura academicista era destinada aos homens, Georgina firmou-se internacionalmente.
Em 1919, Georgina Albuquerque recebeu a medalha de ouro na Exposição Geral de Belas-Artes, o que a fez ser convidada para ser júri de pintura em 1920, tornando-se a primeira mulher brasileira a ocupar esse posto. Isso a levou a ter uma posição elevada na academia.
A artista criava telas de natureza morta, nus artísticos, paisagens e cenas do cotidiano, além de ter sido pioneira na pintura histórica nacional. Com esse último tema Georgina rompeu com os padrões da época ao retratar uma mulher como protagonista de um momento histórico brasileiro na obra Sessão do Conselho de Estado.
Sessão do Conselho de Estado
Até 1922, ano da Semana de Arte Moderna, a pintura histórica brasileira era um ambiente ocupado apenas por homens, mas com a obra Sessão do Conselho de Estado, Georgina rompeu esse paradigma. Além disso, a tela foi a primeira a retratar uma mulher como protagonista em um evento histórico
O ano da pintura corresponde ao centenário da Independência do Brasil que já havia sido retratada em diversas obras como no famoso quadro “Independência ou Morte”, de Pedro Américo, feito sob encomenda em 1888 para o Museu do Ipiranga, em São Paulo.
Na obra de Georgina feita em óleo sobre tela, com 210 cm por 265 cm, a artista retrata o evento diplomático protagonizado por Maria Leopoldina. A pintora criou a tela para participar de um edital da Comissão Executiva do Centenário, Secção de Belas Artes, em comemoração aos 100 anos da Independência do Brasil, sendo exposta pela primeira vez na Exposição de Arte Contemporânea e Arte Retrospectiva do Centenário da Independência em 12 de novembro de 1922.
Para realizar a obra, Georgina recorreu aos documentos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, buscando proximidade com a aparência física de Maria Leopoldina, em especial, utilizando como referência a obra realizada por Jean Baptiste Debret publicada na Voyage Pitoresque et Historique au Brésil de 1836.
Gergina também retrata José Bonifácio de Andrada e Silva que está interagindo com Leopoldina, Martim Francisco Ribeiro de Andrada, que está sentado, Joaquim Gonçalves Ledo que está com as mãos na mesa. Atrás de Martim Francisco encontra-se José Clemente Pereira e atrás de José Bonifácio, estão Caetano Pinto de Miranda Montenegro, Manoel Antônio Farinha, Lucas José Obes e Luiz Pereira da Nóbrega.
A reunião ocorreu durante a ausência de Dom Pedro I que estava em viagem para São Paulo. Na ocasião, Leopoldina foi nomeada como chefe do Conselho de Estado e Princesa Regente Interina. Nesse momento, Leopoldina passa a ter poderes legais para governar o país. As ameaças de Portugal ainda eram intensas, então, Leopoldina aproveitou o momento. Em 2 de setembro de 1822 a princesa regente acionou o Conselho de Estado e redigiu uma carta a Dom Pedro I. Junto à carta, enviou outra mensagem redigida por José Bonifácio, além de comentários negativos de Portugal com relação à atuação do regente. Na carta, Leopoldina sugere que o marido proclame a Independência do Brasil, incluindo a conhecida frase:
“O pomo está maduro, colhei-o já, senão apodrece”.
As ações da então princesa Leopoldina estão diretamente ligadas à Independência proclamada por Dom Pedro I.
No mesmo ano em que Georgina Albuquerque expôs seu quadro, ocorreu a Semana de Arte Moderna em São Paulo. Embora Georgina fosse uma acadêmica, a pintora também estava sendo influenciada pelo modernismo.
A Sessão do Conselho de Estado foi descrita como uma obra ousada e contida ao mesmo tempo. “Contida”, porque apresenta um impressionismo acadêmico, com elementos convencionais da pintura histórica, “ousada” porque subverte as expectativas de um heroísmo masculino.
Dessa forma a obra une os dois aspectos em sua estilística: o academicismo e o modernismo.
A Semana de Arte Moderna ocorreu no Theatro Municipal de São Paulo entre 13 a 18 de fevereiro de 1922 trazendo diversas manifestações artísticas incluindo dança, música, poesia, pintura, escultura e palestra.
A proposta do evento era promover uma renovação da linguagem artística na busca pela experimentação e pela liberdade de criação, rompendo com padrões pré-estabelecidos do passado. Apenas três artistas mulheres participaram do evento: Anita Malfatti e Zina Aita com exposição de quadros, e Guiomar Novais tocando Chopin no piano. Vale lembrar que Tarsila do Amaral, grande nome do modernismo brasileiro, teria participado do evento, mas estava em Paris na ocasião.
Georgina Albuquerque e o feminismo de 1922
O ano de 1922 foi marcado também pela luta das mulheres. No Brasil, em 9 de agosto de 1922, foi fundada a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) que lutava pelos direitos civis e políticos das mulheres, tendo como líder a bióloga e ativista feminista Bertha Lutz que também organizou o Primeiro Congresso Feminista no mesmo ano.
Independente da intenção da artísta, a obra de Georgina de Albuquerque apoiava a luta feminista de sua época. Ao retratar Leopoldina decidindo os rumos do país um século antes de sua obra, a artista acabou desafiando a predominância masculina no ambiente artístico acadêmico.
Referências
COSTA, Angyone. A Inquietação das abelhas. Rio de Janeiro : Pimenta de Mello & Cia. , 1927, p. 90-91.
Simioni, Ana Paula Cavalcanti. Entre convenções e discretas ousadias: Georgina de Albuquerque e a pintura histórica feminina no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online]. 2002, v. 17, n. 50, pp. 143-159. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/VynXp7ZkxLLm8jSKW6kXyWQ/abstract/?lang=pt#. Acesso em 12 de janeiro de 2022.
GEORGINA de Albuquerque. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa21325/georgina-de-albuquerque. Acesso em: 12 de janeiro de 2022.
FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção e organização). Georgina de Albuquerque – o impressionismo e suas derivações. Templo Cultural Delfos, junho/2013. Disponível no link http://www.elfikurten.com.br/2013/06/georgina-de-albuquerque-o.html. Acesso em: 12 de janeiro de 2022.
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