O que significa segurancaalimentar?
Regiane Wochle fala sobre a responsabilidade do Estado de garantir a segurança alimentar de sua população.
Transcrição da entrevista da economista Regiane Wochler concedida ao Mulheres de Luta.
A partir de março, principalmente final de março e início de abril, ou seja, o segundo trimestre do ano de 2020, nós vimos realmente a atividade econômica caindo drasticamente, nós vimos recentemente os dados do PIB mostrando essa queda bastante acentuada, mais de 9% em relação ao primeiro trimestre.
Nós vimos, também, o aumento do desemprego, que obviamente está relacionado a queda de atividade econômica.
E nós vimos, principalmente, essa é a parte mais preocupante, uma grande parcela da população, que se viu de um dia para o outro, absolutamente sem fonte de renda, sem ter como custear as suas despesas mensais, inclusive as despesas de alimentação.
A gente entra no que chamamos de segurança alimentar, ou seja, faz parte do governo garantir que seus habitantes tenham segurança alimentar.
Em um cenário como esse de pandemia, de calamidade pública, em função da questão sanitária, que obviamente tem reflexos na questão econômica, nós vimos uma série de articulações do Congresso, do governo para tentar minimizar o impacto da pandemia na economia e na vida das pessoas.
Nós vimos, no início de março, discussões em relação a liberação de um auxilio emergencial, de uma renda básica, então nós temos visto, de lá para cá, o aumento nas discussões sobre se devemos trabalhar ou não com a renda básica, renda básica universal, enfim.
Esse foi um tema retomado, não só aqui no Brasil, mas ao redor do mundo, porque a pandemia deixou, de maneira bastante clara, o quão desigual é o Brasil. Ou seja, nós somos um país de uma desigualdade social tão grande e essa desigualdade social ficou absolutamente escancarada nesse cenário, quando nós vimos essas pessoas que estavam já desempregadas, que estavam no mercado informal, basicamente, de um dia para o outro, passando fome.
O auxílio emergencial proposto pelo governo foi, inicialmente, de 200 reais, o Congresso se reuniu e aumentou o valor para 600 reais. Esse valor de 600 reais foi bastante importante para garantir, de novo, a segurança alimentar dessas pessoas, nesse período.
Alguns estudos mais recentes, tanto do IPEA, quanto da FGV, mostram que as famílias mais pobres, principalmente aquela camada, daquelas pessoas que ficavam, no que a gente chama, de abaixo da linha da pobreza, a gente está falando de um grande número de brasileiros que estão na faixa da pobreza e abaixo da linha da pobreza, e essas pessoas, com esses 600 reais, elas puderam garantir a sua segurança alimentar.
Quando a gente fala de segurança alimentar, a gente fala necessariamente das pessoas serem capazes de comprar o seu sustento, a alimentação do dia a dia, de fazer o mínimo de 3 refeições no dia, vamos lembrar que o recomendável pela Organização Mundial da Saúde são de 5 refeições por dia, mas, ao menos, que essas pessoas pudessem fazer essas três refeições ao dia.
Aqui em uma cidade grande como São Paulo, 600 reais foi suficiente para pagar uma cesta básica, em outros locais isso permitiu uma ampliação de consumo, então, o que a gente vê, é que as pessoas que estavam abaixo da linha da pobreza são pessoas que estão realmente em situação de vulnerabilidade, que esses 600 reais foram fundamentais para que elas não passassem fome.
Mesmo assim, nos grandes centros, esses 600 reais não paga aluguel, não paga conta de luz, não paga outros serviços que são necessários para a manutenção da vida.
O que nós vimos nas grandes cidades foi uma articulação civil bastante importante, bastante significativa. Nós vimos uma série de coletivos e de ONGs atuando, principalmente, nas favelas e nas comunidades mais carentes. Então, uma rede de solidariedade se estabeleceu no fornecimento de máscaras, de produtos de higiene, de alimentação e cestas básicas, para que essas pessoas continuassem protegidas e pudessem fazer o isolamento social necessário, para se proteger em relação à pandemia.
Nós vimos agora, mais recentemente, que o governo se propôs a reduzir esse auxílio para 300 reais, o que coloca essas pessoas de volta na linha de insegurança alimentar. Nos grandes centros, 300 reais não era, no início da pandemia, suficiente para se garantir a alimentação, e agora, com a inflação vista nas últimas semanas, principalmente nos setor de alimentos, fica evidente que esse valor não é suficiente para garantir que essas pessoas possam, ao menos, custear as suas despesas com alimentação.
Internamente, a primeira coisa que pesa bastante é a ausência do que chamamos de estoques reguladores.
Os estoques reguladores são estoques que são geridos pela CONAB, a Companhia Nacional de Abastecimento, que têm o objetivo realmente de, em momentos de escassez dos produtos básicos da alimentação brasileira, como arroz, feijão, soja, carne, que esses estoques possam ser colocados em um momento de estrangulamento de mercado, como a gente fala, de economia, ou, na verdade, na prática é, se faltar esse produto no mercado, que esses estoques que ficam guardados na CONAB, possam ser colocados a venda e possam regular o preço automaticamente.
O que nós vimos, principalmente no governo Bolsonaro, na verdade, desde o governo Temer, mas principalmente intensificado a partir de 2019, com o governo Bolsonaro, foi um desmonte total desses estoques reguladores, um desmonte, também, na atuação da CONAB, dos órgãos de regulação de preços.
Acho que cabe de dizer aqui que ninguém está defendendo que não se deve ter livre mercado, porque essa é uma situação que é colocada pelo governo, o que a gente defende é que o mercado é livre sim para flutuar, mas a gente tem que ter políticas públicas, estratégias de gestão de estoques, para garantir que a população, principalmente a mais pobre, não pague o custo de um aumento de preços, como esses que nós estamos vendo nos alimentos e que isso signifique, em última instância, passar fome.
Ou seja, que faça parte da política de segurança alimentar de um país prever que oscilações em preços de commodities são possíveis, nós vivemos em um mundo integrado, portanto, nós também temos fatores externos que influenciam nesses aumentos de preços aqui, mas a gente tem que saber que não podemos deixar os pobres passarem fome, muito menos culpados por um consumo que é de alimento.
Deveríamos estar felizes com a situação dos pobres conseguirem comprar alimentos com esse cenário de pandemia e não acusá-los de aumentar a demanda interna e elevar o preço, quando a gente sabe que não é isso que aconteceu.
Chega a ser até desleal com as famílias mais pobres que estão passando por um aperto, que sofrem todo dia, que ficaram entre a cruz e a espada, de ter que escolher entre sair às ruas e ganhar qualquer recurso para levar alimentos à mesa, ou se proteger da pandemia.