As baladas de Janis Joplin, o assassinato de Kennedy, a guerra do Vietnã. Heloísa Buarque de Hollanda estava em Cambridge, nos Estados Unidos, no início da década de 60, e foi contagiada pelo clima de mudanças. Formada em grego, abandonou a língua e começou a trabalhar com cultura e política desde então.
Heloísa Buarque de Hollanda compartilhou sua história e narrou episódios do início dessa trajetória com o Mulheres de Luta, seus olhares, e os cenários nos quais aflorou as inquietações e as atuações da feminista.

“Entrei para a Faculdade de Letras, já não tinha mais nada a ver com grego, era literatura brasileira. Era um galpão meio aberto, meio improvisado, provisório. Então, era absolutamente sensacional, porque uma aula tinha a ver com a outra e era um fórum permanente de debates. Todas as aulas eram debates. Foi o momento mais inacreditável que eu vivi. Foi de 64 a 68, na Faculdade de Letras. Era uma vibração. A gente discutia ensino, discutia pauta nacional, discutia cultura, fazia cultura sem parar. Eu me lembro de estar muito engajada naquilo tudo, mas ser sempre aquela coisa sobre: 1- Resistência à ditadura; 2- A favor de uma fala, de liberdade de expressão.
A palavra de ordem, sabe como é que era? Mudar a vida. A ideia era sair do sistema, mudar a vida, mudar as relações familiares, mudar o casamento, mudar a educação, enfim. Não só mudar a universidade, mas mudar a sua vida. Isso era novo para essa geração, porque era um ato político.”
No ambiente acadêmico, o debate sobre teorias que estavam em voga na década de 1960 e 1970 unia-se à crítica social e ao pensamento feminista. No Brasil, fora das universidades, o cenário sócio político também impulsionava um embate das mulheres com os valores vigentes. No segundo caso, a oposição se dava a partir da realidade vivenciada.
“Você tem a MMPF, a Marcha das Mulheres pela Família, mas também na anistia, teve mulheres que usaram o estereotipo da mãe para uma ação política. Eu acho interessante. Em nome da mãe, você pode chorar a morte de um filho e gritar que a ditadura é violenta, é assassina, etc., enquanto mãe. Enquanto cidadã, você não podia fazer isso. Então, eu acho que teve essa operação, que foi uma operação muito bonita de uso, de apropriação política da categoria mãe, que deu uma voz plus, que deu uma voz a mais à mulher ali como resistência. Eu achei que foi um uso interessante. Se a América-Latina inteira, principalmente na Argentina, as mães da Praça de Maio são históricas, né? Aquelas mães puderam ir para um lugar que
Ninguém podia ir, que era na praça, gritar contra. Então, tem também esse uso durante a ditatura, que eu acho que foi o uso muito bonito. A anistia foi carregada pelas mães, pelas mulheres. Todo movimento da anistia. A sagrada figura da mãe, que tem que enterrar seu filho, sabe? É um estereotipo assim, muito belo, quer dizer, é junto com dor, com a natureza da mulher. Quer dizer, todas as coisas que a gente não quer valorizar, foram valorizadas de uma maneira extraordinariamente política e criativa naquele momento. Foi muito bonito, eu acho. O uso do estereotipo, bem-vindérrimo, né?”

No Brasil, se assumir feminista não tinha o mesmo status que havia em outros países, conforme Heloísa Buarque de Holanda relata. Nem por isso o pensamento feminista não estava presente, mesmo entre as que renegavam o conceito. Na arte, o feminismo também encontrou uma forma de se pronunciar.
“Nos anos 90, eu fui chamada para fazer uma curadoria de uma exposição de mulheres. E eu, obviamente, pensei que fosse uma exposição feminista. E elas tiveram muita agonia, dizendo, “Eu não quero uma exposição feminista, porque nós não somos feministas. Nós somos artistas.” Aí, eu fui olhar o trabalho delas, era de radicalidade absurda. Eram trabalhos profundamente feministas, que elas não designavam como. Eu não acho isso nem bom, nem ruim. Eu acho uma coisa conjuntural, daquele momento. É o Brasil. Quer dizer, no Brasil, era difícil você se assumir feminista. Uma pessoa que não consegue se assumir feminista, se nomear feminista, reproduzir uma obra profundamente feminista. O que interessa é a obra. Então, eu acho esse descompasso, esse desconforto, ele é, como se diz, garantido por uma outra coisa. “Eu não sou feminista. Olha aqui.” Aí, você vai ver, é uma obra radical, linda. Eu até fiz uma exposição, CCBB, chamada “Manobras Radicais”. Eram só obras de mulheres e eram radicais. E não eram feministas. Então, a gente botou “Manobras Radicais”, o nome porque era de uma beleza. É de uma beleza essa exposição, porque você via quatro andares de mulheres tomando uma posição clara, fossem auto nominadas feministas ou não. Mas com uma obra muito contundente. Isso é uma alegria, mesmo onde você se sente mal de se chamar feminista, você não perde esse olhar. Eu acho isso bonito. Eu não acho isso inadequado. Agora, hoje, é lindo se chamar de feminista. Virou tatuagem, né?”
Aos poucos, os debates sobre feminismo, desigualdade social e racismo romperam os muros das Universidades e chegaram às ruas. A escritora, editora, ensaísta e crítica literária Heloísa Buarque de Hollanda trabalhou para isso e continua trabalhando.
Ao organizar e publicar “26 Poetas Hoje”, em 1975, Heloísa divulgou a poesia marginal que encontrava resistência no meio acadêmico. Na década de 80, fomentou o projeto “Abolição”, que estudava questões raciais na arte brasileira, e “Mulher e Literatura”, que reunia relatos de matriarcas nordestinas. Com o projeto Universidade das Quebradas, pela UFRJ, que teve início em 2009, a escritora continua promovendo o diálogo entre produtores e artistas periféricos com a comunidade acadêmica.

“Eu dizia que era feminista, porque eu estava impregnada nos Estados Unidos. Eu fiz esse batismo feminista nos Estados Unidos, onde ser feminista era um status legal. Então, eu voltei falando essa palavra. (….) Mas eu mantive um pouco ela e não senti desconforto por causa disso. Eu estava americanizada, eu acho. Mas no Brasil, sempre foi muito difícil.
Essa coisa da gente se descobrir feminista no exterior parece que é quase a regra, porque eu tenho estudo da Cintia Sarti interessantíssimo sobre isso, mostrando essa percentagem alta. E ela justifica um pouco dizendo que o feminismo no Brasil, nos anos 60, 70, eles estavam muito ligados à oposição, estavam ligados à igreja, à oposição ao golpe. E você não ia comprometer uma relação que a pauta era o corpo, o aborto, a pauta desse momento. Você não ia comprometer uma relação com a igreja que era um dos poucos polos de resistência política progressista por pautas que ela não aceitaria. Então, foi um pouquinho adiado esse momento no Brasil, que aliás, eu acho que só tem retomado mesmo com força total hoje, né? A pauta do corpo, do aborto, ele é tardio no Brasil. A gente defendia o trabalho. Inclusive, na minha área, que era a literatura, a representação era muito discutida, a mulher no mercado literário. Isso era muito discutido, tudo. Mas você segurava a pauta do corpo, tranquilamente. Só podia ter o direito reprodutivo e a saúde da mulher. Mas as questões que conflitam com a igreja, ficou segurável um pouquinho.”
Heloísa Buarque de Hollanda nasceu em 26 de julho de 1939 em Ribeirão Preto. Com mais de 60 anos de carreira, a escritora discutiu o feminismo no Brasil de forma pioneira.
Sua capacidade de escuta é uma de suas características mais marcantes, o que contribui para a articulação de temas como gênero, feminismo, desigualdade social e racismo. Não à toa, Heloísa Buarque de Hollanda propaga seu olhar sobre o feminismo convidando outros olhares.
“No começo, quando eu comecei a trabalhar com feminismo, a nossa missão era um pouco essa. Era a representação do que os homens faziam das mulheres, o que as mulheres faziam delas mesmas. Então, a gente ficou muito trabalhando isso e descobrir um pouco o óbvio, né? Quer dizer, o olhar era masculino, o olhar era fetichizante, o olhar era de submissão. Quer dizer, de se submeter, desculpe, etc. A gente não saía um pouco do mesmo. Então, eu um pouco mudei essa perspectiva, para a perspectiva do que as mulheres estão falando. E se você for ver o mercado de livros, por exemplo, a presença das mulheres é enorme. Elas estão passando dos 50%. As mulheres estão vendendo, elas estão ganhando esse mercado, enquanto mulheres. Eu vou para uma livraria e procuro livros de mulheres. Eu acho que muita gente faz isso, por causa do estilo, da novidade. É um gênero novo, né? É uma coisa interessante, porque estão inventando um modelo de falar também, principalmente essas mais novas. Você tem escritoras agora muito inquietantes, muito interessantes e novas. Então, estão sendo publicadas bastante.”
Heloísa Buarque de Hollanda organizou diversas coletâneas, entre elas “Tendências e Impasses, o feminismo como crítica da cultura”, de 1994, apresentando ensaios reunidos desde 1980. “Explosão Feminista: arte, cultura, política e universidade”, de 2018, é outra coletânea que nos convida a observar pontos de convergência e divergência sobre o feminismo da última década no cenário brasileiro. Em “Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto”, de 2019, a autora tece o encontro entre as teorias feministas no Brasil e no mundo, pela perspectiva de dezenove autoras. Na coletânea “Pensamento feminista: conceitos fundamentais”, também de 2019, aborda os conceitos e teorias de estudiosas e ativistas, fornecendo um rico material base para qualquer estudo sobre o tema.
A escritora apresenta o feminismo como um conceito vivo, difundindo variadas perspectivas, compartilhando experiências de décadas passadas e projetando o feminismo para o futuro.
“Eu acho a Bila Jorge, que é minha gurua, ela escreveu um negócio que eu não consigo pensar mais fora desse eixo. Ela dizia assim, “Para a gente, o pessoal era político.” Ela foi a grande descoberta da minha geração. E agora, para as meninas, o político é pessoal, que é uma mudança de eixo tão bonita, que só poderia ter saído da cabeça da Bila, que é uma pessoa rara. Era muito isso. Era o pessoal político, muita análise, todo mundo fazia análise, não sei de onde tiravam tanto dinheiro para fazer análise. Análise não era como agora, não. Era 5 vezes por semana. Era uma atitude que era importante politicamente. Era uma coisa de você conseguir romper seu imaginário e ir além. Era muito interessante. E tinha gente até no Brasil que fazia, analistas que usavam ácido, (energético), na análise. A ideia era essa: abrir os horizontes e abrir as fronteiras do pessoal enquanto política. E um pouco isso. Claro que eu me separei nessa época, claro que tudo aconteceu nessa época, nas nossas vidas. Tinha muitas festas. A festa era uma outra senha. A festa era uma festa política, era um encontro político de liberação, de discussão, de debate. A praia, a festa, evidente que eu estou falando de alta classe média, né? Classe média para a alta, né? A juventude universitária daquele momento era bem classe média. Você não tinha cota, não tinha entrada, era bem trancadinho a universidade. A para essa geração, que é essa geração classe média que configurava a universidade nesse momento, a festa e a praia eram arenas de discussão, de transformação social, de transformação do corpo, de transformação do desejo, de várias coisas que a gente não tinha na bandeira política, mas tinha na bandeira da cultura, da banda cultura naquele momento. Eu tenho a impressão que já devia estar entrando na bandeira das feministas, mas eu não me lembro, porque eu achava que naquela época, o Brasil não tinha problema de machismo nenhum. Cega, surda e muda.”
Se entre as décadas de 1960 e 1980, o feminismo se apoiava em um projeto de transformação social, hoje as mulheres reivindicam seus direitos conquistados. Antes, por exemplo, era difícil identificar o que era assédio, hoje temos mecanismos de denúncia para esse crime. É possível ecoar. Anteriormente concebíamos uma visão binária com relação à gênero, mas a escritora comenta que isso já mudou, e continua mudando.
“No meu tempo, começou a aparecer o feminismo negro, mas ainda sem representatividade. Mas era uma coisa que o feminismo branco dominava. E aí, de um certo momento para cá, no Brasil, por exemplo, foi nesse momento do estouro. Sempre houve um feminismo negro, mas um feminismo negro que interpelasse o branco de frente, eu acho que está acontecendo agora.

Você tem também, a gente tinha o movimento binário, né? O gênero era dois. Eu só conhecia dois. Eu conhecia masculino, feminismo, gay e lésbico. Agora você tem, na última informação que eu tive, 57 gêneros. E parece que cientificamente, você tem uma variação de cromossomos infinita. Biologicamente, você tem essa variação, porque quando você constitui a anatomia sexual, é de uma vez só. Mas a representação sexual no cérebro, ela, diz o médico, que a combinatória é gigantesca. O movimento lésbico levou anos e ainda eu acho que não conquistou no Brasil completamente. Ainda é um pouco deficitário. E de repente, o movimento trans aparece e arrebata imediatamente. Isso é um giro de eixo que eu acho muito importante. É um giro, que eu acho que tem também o pensamento, se você ler Beatriz Persiato, esses novos filósofos, você vai ver que se você tira esse eixo fálico, que é o que a minha geração tentava com a sua leitura de Freud, na sua leitura de Marx, fálico, denunciava, mas não recriava uma outra condição. Mas hoje, eu acho que esse eixo virou. Esse eixo está frágil no pensamento contemporâneo. Então, você abre para o trans aparecer em cena aberta, confortavelmente, né? Claro que vão matar muitos trans, daqui a pouco, tal e coisa… mas, a rapidez da presença em cena do trans é uma coisa que chama atenção. É uma mudança, obviamente, epistemológica. Ele não pode aparecer do nada. O pensamento estava sendo preparado para isso, eu acho. E é definitivo, não tem caminho de volta me parece, né?”
Hoje, temos a internet para fazer ecoar. Apesar de estimular atos negativos como ataques e comentários intolerantes, é possível realizar denúncias e criar movimentos em rede, como é o caso das hashtags. O #MeToo é um exemplo desse potencial. Heloisa Buarque de Hollanda comentou sua visão sobre o assunto.
“A internet, ela foi criada por motivos militares, né? Foi uma arma de guerra, e acho que como tal, continua sendo uma arma de guerra. É só você querer que ela seja. Então, é muito interessante que essas mídias sociais, elas têm um poder agregador imediato. Elas têm um poder de comunicação muito grande. Uma hashtag, ela vem da propaganda. É bom a gente ver de onde que vem essa… por que essas plataformas foram criadas, né? A internet, na guerra. A hashtag foi criada na publicidade. Então, esse uso da hashtag pelo movimento feminista é sensacional. É claro que a internet, pela falta da presença, provavelmente, da pessoa, ela pode desviar para uma intolerância muito violenta, pelo sexing, que é uma coisa terrível, o abuso sexual pela internet. Quer dizer, você tira uma foto da sua namorada, bota na… tudo isso fica possível. O sexing, é um perigo. Quer dizer, você tem também essa facilidade perversa. Mas eu acho que está dando mais vantagens do que desvantagens, porque esses novos movimentos, tanto políticos quanto feministas, ele está na conta da internet. Todos os encontros, todas as discussões, os debates, as pautas, estão vindo pela existência da internet. Guerra é guerra, né? Eu acho que o feminismo está fazendo um excelente uso das plataformas americanas de guerra, né?
Eu estou babando com essas meninas, porque realmente, esse feminismo novo, ele tem uma vitalidade, uma criatividade, ele foi ao ponto, porque o que eu me lembro de eu fazer, eu queria que os estudos feministas tivessem um lugar no futuro, dentro daquela faculdade. Eu queria que a causa feminista se resolvesse, mas eu estava sempre pensando depois. Essas meninas já chegam com esse direito garantido.
Eu não vejo nenhuma delas lutando pra conquistar alguma coisa. Elas já têm. Elas estão reclamando porque estão transgredindo. Tanta violência… já tem esse direito e denunciam quando não, porque já tem esse direito garantido.
Talvez, eu acho que essa postura venha de um momento muito especial que foi 2013 em diante. 2013, você aparece com uma marcha, mostrando uma forma nova de fazer política, que me parece aquela da Bila, onde você faz da sua pessoa, uma política. É uma demanda pessoal, a plataforma é o seu corpo. É a sua cara, é o seu black-block, enfim. É como você está se apresentando como pessoa e é como pessoa que você faz a demanda. Tanto que, se você olhar, as demandas são milhares, né? Quer dizer, é um momento onde você vê uma nova forma de fazer política. Em 2013, fizeram demandas bem além do feminismo, que eu vejo que essas meninas estão pedindo outros direitos também, né? Então, você tem uma nova coreografia política, e você tem que se defender de uma onda conservadora gigantesca que está aí. Não é brincadeira.”
Mesmo com todas essas conquistas, o Brasil passa por um momento delicado com o crescimento do conservadorismo, como comenta a escritora. Apesar disso, seu olhar é otimista. Heloísa observa a nova geração de mulheres defendendo seus direitos. Obviamente, ainda há muito a se fazer, especialmente quanto à garantir os direitos das mulheres mais vulneráveis. Acompanhando a trajetória da Heloísa percebemos o que ela deixou como legado, e sabemos que esse movimento de mudanças, proposto e conquistado lá atrás, se projeta ao futuro, porque não tem mais volta.
“Eu falava para os meus pares, para as políticas sociais, eu falava para a universidade, mas eu não falava na rua, eu não falava para outros públicos. Quer dizer, eu falava de um jeito que eu não era ouvida. Elas agora realmente se fazem escutar. Elas ficam peladas. Pronto. Elas fazem uma coisa de uma tal contundência, que você ouve. A escuta ampliou loucamente. Ecoa o feminismo hoje em outras praças que não as nossas, das mulheres. Então, é muito lindo tudo isso. Eu acho que elas ‘tão que tão’. “

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