“A questão da submissão feminina, da submissão do corpo feminino, da vontade feminina, não é exclusivo da Idade Média. Em sociedades antigas em geral, as mulheres não eram entendidas como iguais no sentido mais pleno da Igualdade em relação aos homens.”
Marta Silveira
A afirmação de Marta Silveira nos convida a refletir sobre como a sociedade foi estruturada ao longo dos séculos, acentuando o controle sobre o corpo da mulher. Ao observarmos o cotidiano da mulher medieval, identificamos a submissão do corpo feminino, mas também percebemos um intenso atrelamento religioso a partir dos valores judaico-cristãos.
Em entrevista ao Mulheres de Luta, Marta Silveira falou sobre como o discurso religioso ajudou a reforçar esse papel da mulher na Idade Média, uma vez que ela era considerada a responsável pela reprodução da sociedade. Dessa forma, suas vontades e desejos são controlados por uma sociedade que exige delas a educação dos seus filhos e o cuidado com a casa, a fim de garantir que a família tenha o desempenho social esperado.
No entanto, na Idade Média encontramos mulheres em situações econômicas distintas, vivendo em sociedades que se organizam de formas diferentes, levantando especificidades e variedades que devem ser observadas ao estudarmos a mulher na Idade Média, a exemplo da proposta de reflexão de Marta Silveira.
Transcrição da entrevista:
Quando a gente fala sobre a questão das mulheres na idade média, é bastante complexo, porque na verdade existe o que a gente chama do discurso que é feito em relação às mulheres, que tem um discurso realmente de disciplinarização, do corpo, da vontade feminina que passa por elementos jurídicos, que passam por elementos religiosos, passa por um sistema ideológico que existe na idade média em relação às mulheres.
Mas que também não é propriamente da idade média, a questão da submissão feminina, a questão da submissão do corpo feminino, da vontade feminina não é exclusiva da idade média. Nas sociedades antigas de uma maneira geral também as mulheres não eram entendidas como iguais, no sentido mais pleno da igualdade em relação aos homens.
Então a questão da submissão feminina não é um problema só da idade média, é algo que eu acho que tá diluído na própria forma como a sociedade foi se estruturando ao longo do tempo. Qual é o diferencial no que se refere a mulher na idade média? É que aí há o discurso religioso que se estabelece a partir dos princípios judaicos cristãos.
Então esse discurso religioso ele ajuda a reforçar esse papel da mulher como sendo aquela que por excelência é responsável pela reprodução da sociedade e, portanto, tem que ter as suas vontades, os seus desejos sob controle.
Ao mesmo tempo que ela é responsável pela reprodução social, ela também é responsável pela manutenção dessa própria sociedade na medida em que ela tem que ser uma boa mãe, ela tem que educar os seus filhos, ela tem que cuidar da sua casa, ela tem que cuidar da sua família, ela tem que garantir a célula familiar dela tenha o desempenho considerado ideal e possa ser integrado dentro dessa sociedade.
Esse nível que a gente poderia ser chamado de discurso teórico, mas há a questão prática, o que acontece mesmo no cotidiano, aí você observa que as mulheres medievais seria, a gente também pode pensar o que a gente tá chamando de mulheres medievais, a gente tá usando um termo muito amplo.
Porque há várias categorias de mulheres na idade média, categorias sociais, categorias econômicas, categorias étnicas, então há uma diversidade de categorias muito grandes, mas se a gente for falar de uma maneira geral.
Quando a gente está falando inclusive sobre o discurso teórico que eu acabei de pontuar em relação às mulheres no universo do cristianismo, isso está muito ligado também à cultura ocidental. Não é o tipo de discurso que vai fazer sentido, por exemplo, em regiões que estão mais a oriente, onde o islamismo vai ter também uma referência ou vai exercer uma referência religiosa muito grande sobre a forma como se concebe as mulheres.
Então a gente está usando a categoria mulheres no sentido amplo do termo e a questão é a gente tentar diferenciar, ou tentar entender que a discussão em torno da condição feminina se dá em dois níveis, você tem um discurso teórico, que por vezes é endossado por questões religiosas e jurídicas e políticas propriamente dito.
E há a questão mesmo da forma como, entre aspas, a realidade social se estabelece, e aí é que a grande curiosidade dos historiadores, dos medievalistas, é tentar entender como é que funcionava no dia a dia, no cotidiano as relações de trabalho, as relações de diversão, de recreamento.
Então a forma como as mulheres elas lidavam com o seu cotidiano e isso às vezes é muito complicado da gente conseguir entender através das fontes que a gente tem. Então nós ficamos meio como se fôssemos detetives, buscando aqui e ali elementos que nos ajudem a chegar, a pelo menos próximo, a forma como as mulheres se organizavam na sociedade medieval.
Uma questão, por exemplo, da submissão, tem muito a ver às vezes com a forma como a gente vê nos filmes, não os filmes de hoje, mas os filmes de antigamente as mulheres na idade média pareciam como aquelas mulheres bonitas bem vestidas, geralmente nobres, que no final de uma grande, justa, numa grande batalha, elas apareciam ali com seus Lencinho para dar um agrado ao cavaleiro vencedor.
Então essa forma de ver as mulheres como se fossem meio que objetos decorativos, que ficam ali ao sabor dos homens, para compor aquele quadro, é algo que tem mudado muito e que na verdade gerou uma série de estereótipos.
Porque se você pensar bem, há exemplos e exemplos de mulheres que na Idade Média desenvolveram atividades de liderança política, mulheres que estiveram à frente de exércitos, mulheres que ajudaram a conduzir batalhas, mulheres que trabalhavam nas oficinas produzir, tendo desempenho de determinados ofícios que quase que eram propriamente femininos.
As tecelãs são um exemplo disso e que tinham muitas delas proteção legal para trabalhar. Então o trabalho do historiador é justamente tentar através das fontes ir desvendando um pouco dessa realidade, entre aspas, feminina, livrando-nos de alguma maneira desses estereótipos que ao longo do tempo foram constituídas em torno da forma como as mulheres na Idade Média viviam, se organizavam, se relacionavam.
Esse é o desejo de todo historiador, conseguir chegar a entender um pouco dessa realidade. E isso a gente tenta fazer através das fontes, indo nas entrelinhas, buscando entender os processos em si, descobrindo personagens femininas que têm uma relevância muito grande e que foram renegadas pela historiografia durante um bom tempo.
Têm muito trabalhos sendo produzidos nesse sentido, tentando desmistificar um pouco essa ideia das mulheres na idade média. Agora, obviamente, ainda bem, nós conseguimos avançar muito na nossa luta, então nós hoje temos, nós não somos mais escondidas pela história.
Hoje nós somos mais reconhecidos e isso é o que move a gente também a continuar buscando conhecer um pouco mais sobre como era antes para tentar entender como nós chegamos aqui.
As mulheres da idade média elas eram educadas para desempenhar determinados papéis, o que é que se espera dessa mulher? Que ela seja independente, de até em que grupo social que ela pertença.
O que se esperava, em última instância, que ela fosse mãe, ela fosse uma boa filha, que ela fosse uma boa esposa, que fosse uma boa mãe, e isso a sociedade preservou da idade média, ela manteve, porque inevitavelmente as mulheres é que até hoje asseguram a reprodução da sociedade.
A questão é que antes a reprodução, a questão sexual estava muito ligada a uma moralidade, a preservação dessa moralidade tem a ver com elementos religiosos, mas também tem a ver com a preservação do próprio grupo, era muito difícil, na verdade impossível você saber se o filho que a esposa tinha era do marido ou não.
Daí a questão da virgindade ser tão importante em determinadas situações, na nobreza, por exemplo, isso era vital, até por uma questão de garantir a herança que seria dada ao primogênito.
Porque se, com o tempo, a questão da primogenitura na herança ficou estabelecida, então o primogênito que herdaria maior parte dos recursos da família, seria o responsável mesmo pela liderança patrimonial, consequentemente você tinha que ter certeza se aquela criança ia ser de fato filha do marido, seria a criança legítima.
Porque a questão dos bastardos acabava gerando problemas muito sérios, se você analisar aí a história dos reinos medievais, toda vez que tinha uma sucessão onde a legitimidade do herdeiro era questionada, ou pelo menos de alguma forma disputada com uma outra figura interessada em herdar o trono, era um problema que gerava uma guerra civil.
Então a virgindade era algo que a mulher preservava como um valor, que tinha a ver com a moral e um valor que tinha a ver com a própria preservação da sua parentela. O que acontece hoje em dia, eu acho, é que a gente já venceu essa questão da moral de alguma maneira.
Claro que ainda tá muito diluída na sociedade essa ideia, mas eu acho que conforme o tempo vai passando as pessoas vão refletindo, a sociedade vai refletindo sobre determinadas coisas e a questão da moralidade em relação à virgindade já é algo que de certa forma superada.
Há grupos que, grupos mais religiosos até que tendem a valorizar mais esse elemento e outros que não levam mais esse elemento em consideração, mas de uma maneira ou de outra nós ainda somos educadas para manter no padrão, padrão de sermos boas filhas, padrão dissemos boas esposas e boas mães, porque isso tem a ver com a própria preservação do grupo.
E aí que tá, há alteração desses padrões morais? Há, com certeza, uma mulher hoje ela não precisa ser casada para ser considerada uma boa mãe, olha a quantidade de mulheres, como eu, que são mulheres que sustentaram os seus filhos e são divorciadas, são separadas, enfim, e nem por isso não são boas mães.
Mas nós ainda somos pensadas a partir desses três padrões, é só você perceber, por exemplo, mulher que tem irmãos, pra quem é que vai se voltar ao cuidado dos seus pais como filha, vai ser para seus irmãos? não, geralmente é para filha.
Então nós ainda estamos presas nesses estereótipos, que eu acho que na verdade fazem parte da configuração antropológica da sociedade, é uma questão antropológica, mas também não quer dizer que os homens também não tenham os seus padrões.
Também é muito complicado às vezes você viver num relacionamento onde o homem fica em casa e a mulher trabalha, a sociedade acha isso estranho, porque o padrão masculino também é que o homem tem que trabalhar, se ele não vai trabalhar para sustentar a família, então tinha que trabalhar.
Ele não pode tá em casa cuidando dos filhos enquanto a mulher está na rua trabalhando. Então são padrões que são herdados, tão difundidos na sociedade, na nossa cultura há muito tempo e que não são necessariamente na cultura ocidental, que estão também na cultura oriental. Eu acho que tem a ver com a própria preservação do grupo.
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