“Por que vocês precisam buscar uma referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês comigo”.
Relato de Angela Davis quando em visita ao brasil em 2019.
Lélia Gonzalez nasceu no dia 01 de fevereiro de 1935 em Belo Horizonte, Minas Gerais. Seus pais, o ferroviário Accacio Joaquim de Almeida e a empregada doméstica Orcinda Serafim de Almeida, tiveram 18 filhos, entre eles o jogador de futebol Jaime de Almeida que fez carreira no Flamengo. Lélia sempre acentuava a origem indígena de sua mãe e a origem negra de seu pai, que faleceu quando Lélia ainda era criança.
Em 1942, Lélia mudou-se para o Rio de Janeiro, onde começou a trabalhar como babá e empregada doméstica. Em 1954, concluiu seus estudos no Colégio Pedro II e na sequência ingressou na Universidade do Estado do Guanabara, atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Graduou-se em História e Filosofia, fez mestrado na área de Comunicação Social e doutorado em antropologia política com enfoque em gênero e etnia.
Lélia lecionou filosofia em escolas do ensino médio e foi professora de instituições como a Universidade Estadual do Rio de Janeiro e a Pontifícia Universidade Católica. Na academia, Lélia conheceu Luiz Carlos González, com quem se casou. Ao mesmo tempo em que o casamento se edificava com o amor e a cumplicidade do casal, também trazia dores devido à rejeição da família de origem europeia de seu marido que não admitia o enlace.
“No Brasil é aceitável que um homem branco tenha um caso com uma mulher negra, mas casamento é outro assunto. Quando eles descobriram que nos casamos, ficaram furiosos. Me chamaram de preta suja. Era isso que eu tinha me tornado aos olhos deles, apesar da minha educação, apesar da minha posição”.
Lélia Gonzalez à uma agência de notícias dos Estados Unidos
Lélia não permitiu que o racismo determinasse as escolhas de sua vida, e como resposta, dedicou sua vida à causa, deixando uma vasta contribuição como ativista e intelectual.
O ativismo de Lélia Gonzalez
Entre os anos 1950 e 1970, os movimentos pelos direitos civis dos Estados Unidos repercutiram no Brasil, trazendo uma intensa mobilização artística e política que questionava a realidade social brasileira.
Entre os anos 70 e 80, Lélia Gonzalez, que já possuía uma carreira consolidada como professora e pesquisadora, juntou-se à outras lideranças negras para fundar o Movimento Negro Unificado, o Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras, em 1983 e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), em 1985. Colaborou com o Grêmio Recreativo de Arte Negra e com a Escola de Samba Quilombo. Em 1975, participou da formação do Colégio Freudiano no Rio de Janeiro que difundia o pensamento de Lacan e assessorou o cineasta Cacá Diegues em seu filme Quilombo, de 1984.
A ativista participou de diversas mobilizações de rua e protestos contra as desigualdades raciais e de gênero. Também mobilizou-se contra o apartheid na África do Sul e a favor da constituinte brasileira. Lélia Gonzalez compreendia que a política era feita não apenas com a militância, mas também com a atuação no ambiente institucional. Pensando nisso, Lélia candidatou-se à deputada federal pelo PDT em 1982 e à deputada estadual, pelo mesmo partido, em 1986. Não se elegeu em nenhuma das tentativas, mas se tornou a primeira suplente da bancada em 1982 devido à votação expressiva que teve.
Como militante, Lélia e os grupos dos quais fazia parte, criticavam e lutavam contra a difusão da ideia do mito da democracia racial. Essa ideia defende que não há racismo na sociedade brasileira, porque supostamente existiria um contato harmônico entre portugueses, indígenas e africanos, ignorando a violência sofrida pelos povos dominados e a história da construção do povo brasileiro.
Por causa de sua atuação e resistência política durante o Regime Militar, Lélia chegou a ser vigiada pelo DOPS.
A produção intelectual de Lélia Gonzalez
“A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora. Aí entra a questão da identidade que você vai construindo. Essa identidade negra não é uma coisa pronta, acabada. Então, para mim, uma pessoa negra que tem consciência de sua negritude está na luta contra o racismo. As outras são mulatas, marrons, pardos etc.”
Lélia Gonzalez em 1988
Lélia Gonzalez trabalhou traduzindo livros de filosofia da língua francesa para o português, organizou grupos de estudos em sua casa para leituras e discussões de obras relevantes da época. Participou ainda de inúmeras conferências e encontros acadêmicos dentro e fora do país, tornando-se possivelmente a intelectual negra que mais circulou por países estrangeiros.
Escreveu ensaios como Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira, de 1983; A mulher negra no Brasil, em 1984; Por um Feminismo Afro-latino-Americano de 1988, entre outros. Contribuia para revistas com periódicos feministas e negros, a exemplo de “E a trabalhadora negra, cumé que fica?”, publicado em 1982 no Jornal Mulherio, “A questão negra no Brasil”, de 1981 para o Cadernos Trabalhistas; e “A importância da organização da mulher negra no processo de transformação social”, publicado no Jornal Raça e Classe em 1988.
Entre os livros de Lélia Gonzalez estão “Lugar de Negro”, de 1982, em coautoria com Carlos Hasenbalg, e “Festas Populares no Brasil”, de 1987, premiado na Alemanha.
Nos textos que escreveu e nas palestras que ministrou, a intelectual transmitia seu pensamento e teoria. Em sua pesquisa, Lélia explorou o afrocentrismo, o existencialismo e o marxismo, além de disciplinas variadas como antropologia, sociologia, psicologia, história e filosofia. Essas bases contribuíram para que Lélia desenvolvesse um pensamento original sobre a sociedade brasileira.
Uma de suas críticas era de que a população negra deveria se empenhar em construir um pensamento próprio do negro a partir da centralidade nos sujeitos negros, especialmente nas mulheres negras, uma vez que as terorias tradicionais não davam conta de explicar a experiencia negra no Brasil. Para Lélia, o Brasil não deveria importar teorias negras dos Estados Unidos, por exemplo. O negro brasileiro deveria ter a oportunidade de entender a sua própria experiência.
Para ela, a negritude brasileira não estava nem na África, nem nos Estados Unidos. Ela não negava a importância da África para nós, mas considerava que no Brasil, a África se manifestava a partir das nossas realidades, com o nosso candomblé, capoeira, e outros valores da cultura negra. Lélia Gonzalez defendia o rompimento com a dicotomia entre colonizador e colonizado, e suscitava o protagonismo do colonizado na transmissão de valores para a formação cultural. Lélia também construiu um pensamento sobre o feminismo negro brasileiro, articulando a raça, gênero e classe.
Com base nesse pensamento a pensadora cunhou o conceito de amefricanidade que se refere à experiência de mulheres e homens negros na diáspora, bem como a experiência de mulheres e homens indígenas contra a dominação colonial.
Lélia faleceu aos 59 anos em 1994 por problemas respiratórios, não sem antes ter se tornado um maiores nomes do movimento negro e deixado uma vasta contribuição para a sociedade brasileira.
REFERÊNCIAS
“Uma pensadora brasileira”. Revista Cult, Raquel Barreto. 03 de julho de 2019. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/lelia-gonzalez-perfil/. Acesso em 11/02/2022.
“Angela Davis e Lélia Gonzalez: conheça duas teóricas do feminismo negro nos EUA e no Brasil!”. Site Politize. 6 de outubro de 2021. Disponível em : https://www.politize.com.br/angela-davis-e-lelia-gonzalez/?https://www.politize.com.br/&gclid=CjwKCAiA9aKQBhBREiwAyGP5lUB8X9okaT3NhmgiSigbEGjsupEU0UOJaqL75p-LU1uVbynH2ZmyvhoCFnQQAvD_BwE. Acesso em 11/02/2022.
“Intelectual e feminista: Lélia Gonzalez, a mulher que revolucionou o movimento negro”. Brasil de Fato. Letícia Fialho. 01 de Fevereiro de 2018. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2018/02/01/intelectual-e-feminista-lelia-gonzalez-a-mulher-que-revolucionou-o-movimento-negro/. Acesso em 11/02/2022
Memorial Lélia Gonzalez. Disponível em: https://web.archive.org/web/20160110054057/http://leliagonzalez.org.br/. Acesso 11/02/2022.
BARTHOLOMEU, Juliana S. 2019. “Lélia Gonzalez”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/lelia-gonzalez. Acesso em 11/02/2022.
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