A literatura para crianças é repleta de possibilidades. Ela permite o exercício da imaginação e a experimentação de emoções e sentimentos a partir das histórias. A leitura também contribui para as capacidades expressivas da criança, permitindo uma melhor articulação de ideias através da fala.
Assim, fica claro que são inúmeras as contribuições que a literatura fornece às crianças, mas, afinal, qual a diferença entre a literatura que é feita para crianças e para adultos?
A primeira observação é com relação às pessoas que criam histórias para crianças. Adultos criam histórias para adultos, mas não são as crianças que criam histórias para crianças. Os adultos é que criam para elas também!
Mesmo assim, a escritora Ana Beatriz Manier conta que muitas ideias, inclusive a do título de seu livro “Astrobeijo”, vieram da imaginação de sua filha.
Outra observação é com relação ao que é considerado ou não uma obra infantil. Muitas obras escritas para adultos, a exemplo de Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, conquistaram o público infantil. O oposto também ocorre: Alice no País das Maravilhas, que foi escrita para crianças, conquistou e continua conquistando adultos e crianças de diversas gerações.
Retratar as crianças nas obras é uma outra característica das histórias criadas para as crianças. Nelas, quem escreve a obra acaba trazendo um pouco do que em geral uma criança é: curiosa e interessada em desbravar o mundo.
A criança ainda está descobrindo o mundo da linguagem, portanto, a utilização do vocabulário é outra preocupação de quem escreve, buscando trazer um vocabulário compatível à idade. A presença de ilustrações nos livros infantis também contribui para a leitura da criança.
No sétimo episódio da série “Literatura, Substantivo Feminino” as escritoras falam sobre a “Literatura para Crianças”. Ana Maria Machado, Lúcia Bettencourt, Lya Luft, Claudia Nina, Susana Fuentes, Marina Colasanti, Heloisa Pires Lima e Stella Maris Rezende estão nesse encontro.
Aqui, você assiste ao primeiro bloco do episódio. A série está em exibição no canal CinebrasilTV:
Confira os principais assuntos abordados por essas escritoras a respeito da “Literatura para Crianças”.
A Imaginação das Crianças
Existe um mundo localizado em um tempo outro. Nele, nada é impossível e tudo pode ter acontecido em um “era uma vez” distante, que volta a ser vivido no presente. Essas vivências são sensoriais, emocionais, reflexivas, críticas e nos permitem viajar por diversas culturas, lugares e estações.
No mundo da “Imaginação” tudo pode acontecer. Uma das bússolas que nos guia até ele é a literatura. As escritoras que criam essas bússolas para as crianças, muitas vezes, buscam os ingredientes dessa criação nas próprias crianças.
Ana Maria Machado não sabe responder qual livro seu mais gosta, mas o que ela mais gostou de fazer foi provavelmente o que mais trouxe o ingrediente da “imaginação” em sua receita. Grande parte desses ingredientes vieram de seu filho Pedro.
“Quando perguntam: “o que mais gostou de fazer?” É fácil responder, por que, “O Menino Pedro e seu Boi Voador” foi um livro que eu gostei muito enquanto estava escrevendo. O processo de escrever foi divertido porque fazia parte de uma brincadeira em família.”
Ana Maria Machado
Ana Maria Machado conta que tudo aconteceu em uma fase em que seu filho Pedro tinha um amigo imaginário – a escritora também teve amigos imaginários na infância.
O amigo imaginário é uma construção simbólica que possibilita à criança uma experiência importante na construção da sua personalidade.
“No caso dele, (de Pedro), como o padrinho dele tinha ido ao Maranhão e tinha trazido uma miniatura de um boi de bumba meu boi que a gente pendurou no teto, e com o vento rodava, ele ficou fascinado com aquele “boi voador” e começou a falar que tinha um amigo boi voador que ia à escola com ele”.
Ana Maria Machado
Mas, não foi apenas o Pedro que inspirou a criação de um livro para crianças. Á exemplo de Ana Maria Machado, Lúcia Bettencourt também foi influenciada por uma criança, nesse caso, seu ‘exigente’ neto Leonardo.
“Eu comecei a escrever para crianças quando saiu a publicação do meu segundo livro de contos. Meu neto nessa época tava aprendendo a ler e perguntou pra mim:
– “Vovó, quando é que você vai publicar um livro de verdade” .
Eu falei.
– “Como, Leonardo? Isso não é um livro de verdade?”
– Não vovó, livro de verdade é o que eu posso ler.
Lógico que eu saí dali e fui fazer um livro de verdade para satisfazer o senhor Leonardo, né?”
Lúcia Bettencourt
A neta de Lya Luft, Isabela, que morava em uma grande casa com toda a família, descia à noite para o andar da avó para dormir com ela. Lya Luft lhe contava histórias inventadas.
“Comecei a inventar uma história de que eu era uma bruxa boa disfarçada de avó, e ela era uma aprendiz de bruxinha.”
Lya Luft
Desses inúmeros episódios de encontro de avó e neta surge “Histórias de Bruxa Boa”, onde a avó pode voar numa vassoura e a neta se torna ajudante de feiticeira.
Claudia Nina também buscava inspiração nas crianças próximas, e a literatura infantil surgiu em sua vida por causa delas.
“A literatura infantil começou pra mim primeiramente porque eu tenho duas filhas. Então, eu comecei a escrever para crianças com uma necessidade de me comunicar com elas dessa forma, através da ficção.”
Claudia Nina
Como vimos, muitas escritoras que escrevem histórias para crianças têm a experiência do convívio com crianças na esfera familiar. Essas crianças não só estimulam essas escritoras a escreverem como inspiram suas obras.
Ana Beatriz Manier começou a escrever para crianças depois da maternidade, por exemplo.
“Com a maternidade você começa a ter todo esse envolvimento muito íntimo e diário com a criança, e você começa a prestar atenção às descobertas de uma forma que até então não foi possível, eu quase nunca tive tanto contato com criança.”
Ana Beatriz Manier
No entanto, a proximidade com crianças não é o único fator que leva uma escritora a escrever para elas, afinal, cada uma de nós um dia já foi criança também. Escrever para crianças também pode partir do exercício de tentar se comunicar com a criança que existe dentro de cada uma de nós…
A Criança dentro de cada Escritora
“Quem me levou a escrever para o público infantil, primeiro, a criança em mim mesma. (…) , eu me lembro muito da criança que eu fui também…
Susana Fuentes
A motivação de Susana Fuentes reforça o contato que cada escritora tem com sua criança interior.
Lya Luft, por exemplo, também volta ao passado e se lembra de quando era criança para escrever seus livros.
“Quando eu era criança e era muito intrometida e muito faladeira, a minha mãe dizia:
– Pelo amor de Deus, para de falar, vai lá falar com o teu pai, eu já tô tonta.
Eu queria saber tudo, e aí eu disse:
– Mas mãe, eu pensei…
– Criança não pensa!”
Lya Luft
A fala da mãe de Lya permaneceu em sua cabeça por muito tempo, e a menina não acreditava nenhum pouco no que tinha ouvido. Quando adulta, a criança permanecia junto à escritora, esperando o momento e a oportunidade mais adequada para dar sua resposta. O momento chegou, e a resposta veio em forma de livro.
“Aí quando eu escrevi esse livro, a minha mãe já falecida há muitos anos, e eu escrevi, “Criança Pensa” e é um pouco sobre educar a criança para pensar também.”
Lya Luft
Para Marina Colasanti, crianças e adultos possuem pontos distintos e semelhantes.
“Mas quando eu estou escrevendo para crianças, eu estou escrevendo para o outro, e com esse outro eu não tenho nenhuma intimidade. Eu não tenho netos, eu não sou professora, nunca fui, não fui educadora, pedagoga, nada disso. Criei minhas filhas, só. Não tenho intimidade nenhuma com as crianças que me leem. Então eu faço, ou tenho que fazer, o ponto de encontro naquilo que nós temos em comum. E o que nós temos em comum são as emoções, o afeto e o desconhecido.”
Marina Colasanti
Para Marina Colasanti, a infância é um período de alta dramaticidade. As crianças experimentam as mesmas emoções dramáticas que os adultos quanto ao que se refere ao medo da perda, do desafeto e da ausência.
É também entendendo como esses sentimentos são vivenciados pelas crianças que conseguimos estabelecer uma conexão com a infância, especialmente através do exercício da empatia, como salienta Heloisa Pires Lima.
“O escritor tem que se colocar no lugar daquele leitor. Administrando as palavras, como é que ele vai conseguir construir uma narrativa de fácil acesso? Porque tem muita gente que escreve para crianças, mas são textos absolutamente complicados que você sabe que aquela criança não vai entender.”
Heloisa Pires Lima
A Linguagem da Literatura para Crianças
No item acima, Heloisa Pires Lima fala sobre a linguagem. A utilização de um vocabulário complexo para a faixa etária da criança pode afastar o leitor. A escritora toma esse cuidado. Ela também insere palavras que podem ser novas para aquela faixa etária, mas faz isso com certa parcimônia.
A ideia é a de que uma boa literatura para crianças tenha um cuidado com o vocabulário, mas que ele não seja restrito a palavras e expressões simplificadas.
A escritora Susana Fuentes também reforça:
“A literatura infanto juvenil não deve ter uma escrita facilitada. Quantos grandes autores escreveram pra criança e na verdade é poesia que chega também para nós, o leitor adulto. Tem livros de poesia que são para crianças e que pra mim é filosofia pura. Para aquele ser sensível dentro de cada um.”
Susana Fuentes
Stella Maris Rezende reconhece que a sinceridade dos mais jovens, aliado à busca de novidades, faz com que eles exijam qualidade literária nas obras que buscam para ler. Mesmo que as crianças tenham um pouco de dificuldade com o texto, vale a pena apostar em vocábulos pouco usuais na infância. A percepção da escritora vem por conta de sua neta Beatriz, que como observa Stella Maris:
“Beatriz fica louca com as palavras que ela não conhece.”
Stella Maris Rezende
O que acontece é que, quanto mais palavras desconhecidas Beatriz encontra, mais ela quer saber os significados e suas aplicações.
Independente da escrita ser para crianças ou adultos, Ana Maria Machado reforça:
“Tanto escrevendo para criança, como escrevendo para adulto, o lado mais prazeroso é o trabalho com a linguagem, é a brincadeira com a linguagem, é descobrir também de uma maneira mais ampla a linguagem narrativa, digamos assim, a estrutura que aquele livro vai ter.”
Ana Maria Machado
Saiba onde assistir ao sétimo episódio da série “Literatura, Substantivo Feminino” – “Literatura para Crianças”.
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