A primeira mulher integrante das Forças Armadas brasileiras
– É verdade, que não tendes filho, meu pai. Mas lembrai-vos que manejo as armas e que a caça não é mais nobre que a defesa da pátria. O coração me abrasa. Deixai-me ir disfarçada para tão justa guerra.
disse Maria Quitéria
– Mulheres fiam, tecem e bordam; não vão à guerra” – respondeu o pai. (FERRAZ)
A história não termina com a recusa do pai, ela começa ali, ou um pouco antes.
Em 1792, ano da Revolução Francesa, o Brasil também vivia um cenário de muitas turbulências sociais. Dom João VI foi declarado príncipe regente, Tiradentes foi enforcado no Rio de Janeiro em decorrência de sua participação na Inconfidência Mineira e, no mesmo ano, em 27 de julho, nasceu Maria Quitéria de Jesus.
É verdade que há algumas contradições acerca do ano de seu nascimento. Em um inventário de sua família realizado em 1802, consta que Maria Quitéria tinha 10 anos naquele ano. Em sua certidão de óbito, de 1853, consta que ela teria falecido aos 56 anos. Se correta essa última informação, ela teria nascido em 1797.
Divergências à parte, de uma coisa não há dúvidas: a baiana Maria Quitéria de Jesus foi a primeira mulher a integrar as Forças Armadas Brasileiras e sua atuação fez com que ela fosse reconhecida como a heroína da independência em 1822.
Alcançar esse feito não foi algo simples, afinal, mulheres não eram aceitas no Exército Brasileiro. Essa conquista nos dá uma pista de como era a personalidade de Maria Quitéria, e de que sua história está repleta de aventuras.
A menina que preferia a caça ao bordado
Maria Quitéria de Jesus foi a primeira filha do fazendeiro Gonçalo Alves de Almeida, e de Quitéria Maria de Jesus. Sua irmã Josefa nasceu em 1794, e Luiz, em 1796.
Com a morte de sua mãe em 1802, Maria Quitéria passou a cuidar dos irmãos. Seu pai se casou novamente, cinco meses após ficar viúvo, com Eugênia Maria dos Santos, mas ela também faleceu pouco tempo depois. Em 1804, Gonçalo casou-se com Maria Rosa de Brito, com quem teve seis filhos: Francisca, Teresa, Bernarda, Ana, Josefa e Manoel.
Em uma época em que as mulheres bordavam e cuidavam do lar, Maria Quitéria preferia caçar e pescar, além de se dedicar ao manejo de armas. Não que a caça fosse exclusiva aos homens. A pesquisadora inglesa Maria Graham relata em seu “Diário de uma Viagem ao Brasil” que:
“As mulheres do interior fiam e tecem para sua casa, como também bordam lindamente. As moças aprendem o uso de armas de fogo, tal como seus irmãos” (GRAHAM,pg 329)
Graham, que entrevistou Maria Quitéria, também menciona no livro que ela não estudou, o que era comum entre as mulheres da época, embora tenha aprendido a escrever o seu nome. Foi desde cedo uma jovem independente e com personalidade forte, o que fez inclusive com que ela tivesse uma relação conturbada com sua madrasta Maria Rosa, que achava a personalidade de Quitéria inadequada para uma menina.
Se ela não se encaixava no padrão de mulher da madrasta, no exército, seus companheiros pensavam um pouco diferente.
O recrutamento de uma mulher com vestes masculinas
Em 1808, ocorreu a transferência da corte portuguesa para o Brasil e o Rio de Janeiro passou a ser a capital do Reino de Portugal. Em 1815, o Brasil deixa de ser colônia para se tornar o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, por decisão de Dom João VI. Com a Revolução Liberal do Porto, em 1820, a corte portuguesa tenta seu retorno a Portugal. Em 7 de março de 1921, Dom João VI nomeou seu filho mais velho, Dom Pedro I, como príncipe regente do Brasil e retornou a Portugal. Os movimentos a favor da independência se intensificaram em meio a todo esse cenário de incertezas e mudanças.
Em setembro de 1822 a fazenda de Gonçalo na Serra da Agulha recebeu a visita de um emissário que visava recrutar voluntários para lutar contra as tropas da corte de Lisboa. O emissário foi convidado à mesa de jantar da família e descreveu os motivos da luta pela conquista da independência do Brasil. Maria Quitéria se entusiasmou tanto com as possibilidades que pediu permissão ao pai para se alistar. O pai de Quitéria não concordou, e o exército também não permitia mulheres nas tropas. Gonçalo disse ao emissário que não podia lutar por ser um homem velho, e que também não tinha filhos homens para oferecer ao combate.
Com a negativa do pai e sem a lei a seu favor, Maria Quitéria partiu para outra estratégia. Ela foi à casa de sua irmã Josefa para contar todo seu entusiasmo com as palavras do emissário. Maria Quitéria disse à irmã que queria ser homem para se juntar às tropas. Josefa respondeu: “se não tivesse marido e filhos, por metade do que você diz, eu me juntaria às tropas do Imperador”.
Foi então que as irmãs empenharam um plano audacioso. Maria Quitéria pegou algumas roupas do marido de Josefa, José Medeiros, se vestiu como homem e foi para a Vila de Cachoeira se alistar no Regimento de Artilharia com o nome do cunhado.
Maria Quitéria ficou conhecida como soldado Medeiros, mas por pouco tempo, pois logo sua verdadeira identidade foi revelada. O pai de Quitéria descobriu a fuga da filha, mas nada a faria desistir, ainda mais contando com o apoio dos companheiros de combate.
Em 31 de março de 1823, o Conselho Interino de Governo baixou a ordem:
“Ordena o Conselho Interino de Governo ao Inspector dos Fardamentos Montarias e Misteres dê a Maria Quitéria com praça de Cadete dois saiotes de Camelao ou outro qualquer pano semelhante, e huma fardeta de Policia […]”.
Após três dias, foi também solicitado uma espada para a soldado descoberta. José Joaquim de Lima e Silva, Comandante chefe do Exército Pacificador, disse:
“Esta mulher tem-se distinguido em toda a campanha com indizível valor, e intrepidez. Três vezes que entrou em combate apresentou feitos de grande heroísmo, avançando de uma, por dentro de um rio com água até aos peitos, sobre uma barca, que batia renhidamente nossa Tropa. O General Labatut conferiu-lhe as honras de 1º Cadete, e como tal tem sido considerado no Batalhão Nº 3 do Exercito Pacificador.
Entre os combates em que Maria Quitéria participou estão o da defesa da Ilha da Maré, de Itapuã, da Barra do Paraguaçu e da Pituba. Após a Independência, as tropas portuguesas permaneceram no Brasil e Maria Quitéria liderou um grupo de mulheres combatentes na foz do rio Paraguaçu, na Bahia. Maria Quitéria foi reconhecida como heroína e Dom Pedro I concedeu a ela o título de “Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro”.
Após a carreira militar
Após a carreira militar, Maria Quitéria casou-se com o lavrador Gabriel Pereira de Brito com quem teve uma filha, Luísa Maria da Conceição. Depois que ficou viúva foi morar em Feira de Santana, em busca da sua parte na herança de seu pai, mas desistiu e mudou-se para Salvador, onde faleceu em 21 de agosto de 1853 em decorrência de problemas no fígado.
Em 28 de junho de 1996, Maria Quitéria foi condecorada como patrona do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro, ato que fortalece as personagens femininas que construíram a história do Brasil e acentua o protagonismo da mulher na sociedade brasileira.
Referências
GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. 1956. (Biblioteca Digital de Obras Raras – UFRJ) págs. 329-331. Acesso em 04 de janeiro de 2022.
FERRAZ, Brenno. A Guerra da Independência da Bahia. Monteiro Lobato e Cia editores. São Paulo. 1923.
Site do Exército Brasileiro. Cadete Maria Quitéria – Quadro Complementar de Oficiais. Acesso em 04 de janeiro de 2022.
Maria Quitéria, primeira soldada e heroína da Independência, por Fernanda Fernandes. Acesso em 04 de janeiro de 2022.
Maria Quitéria, a primeira mulher a se alistar no Exército Brasileiro. Revista Galileu. 20 de agosto de 2021. Acesso em 04 de janeiro de 2022.
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