Mulher – Literatura, substantivo feminino

“Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado

Clarice Lispector

A escrita da mulher tem um ponto de partida: ela mesma. O olhar da mulher não é um olhar comum, é um olhar de mulher.

Isso nos diz muito, especialmente em um mundo no qual, historicamente, as realizações sociais e culturais das mulheres estiveram por muito tempo subjugadas a um lugar de menor valor.

A história da mulher na literatura é milenar. A obra Genji Monogatari da literatura clássica japonesa de Murasaki Shikibu é considerada o primeiro romance escrito por uma mulher.

No Brasil, temos Nísia Floresta Brasileira Augusta, uma das primeiras mulheres a publicar seus textos em jornais; Ana Eurídice Eufrosina Barandas, considerada a primeira cronista do Brasil; Maria Firmina dos Reis, a primeira romancista negra do nosso país; Raquel de Queiroz, a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL) e Nélida Pinon, primeira mulher Presidente da ABL.

Esses são apenas alguns nomes de mulheres escritoras que fizeram a história da literatura no Brasil, que hoje continua sendo contada por outras inúmeras mulheres.

No primeiro episódio de “Literatura, Substantivo Feminino”, escritoras brasileiras trazem uma reflexão sobre ser “Mulher”, especialmente sobre “ser mulher” na literatura.

A série pretende passear por seus olhares, nem que para isso voltemos um pouquinho no tempo. 

Saiba onde assistir à série completa!

Assista aqui ao primeiro bloco do episódio, disponível até 31 de março.

A história da mulher na literatura

“Quando lemos um livro acabamos buscando nos enxergar ali dentro, e o modo como esse livro diz que as mulheres se comportam, acabam sim tendo alguma influência, talvez muito pequena, mas acabam dizendo um pouco de como pensamos, que são os modos corretos de se viver a vida em sociedade.”

Alice Ruiz

A literatura não é apenas um produto do meio, nem tampouco foi criada para determiná-lo. No entanto, ela carrega as perspectivas culturais da formação de nossa história.

Essa história é caracterizada por um modelo de pensamento que sempre ocupou os espaços de poder, privilegiando olhares de um grupo específico.

Sendo assim, nem sempre todos os sujeitos tiveram suas perspectivas manifestas. Na literatura, por exemplo, muitos olhares estiveram à margem por muito tempo. 

Seguindo a linha de pensamento de Alice Ruiz, podemos constatar que, quanto mais olhares na literatura, mais amplas são as perspectivas de uma sociedade.

O processo de compreender a mulher, especialmente a mulher na literatura, passa também pelo entendimento das perspectivas de uma sociedade dominada pelo discurso da cultura patriarcal.

Esse discurso é responsável por reforçar a ideia de inferioridade intelectual da mulher, como se o que ela tivesse para nos dizer tivesse menor valor.

Além disso, também reforçou paradigmas sobre a mulher e sobre o feminino, que não necessariamente partem da percepção das mulheres sobre elas mesmas, instaurando um modelo de “mulher” sob a perspectiva do homem branco e hétero.

Noemi Jaffe observa: “Uma das razões pelas quais as pessoas acham que a escrita da mulher é metafórica, mais sensível, mais nas entrelinhas, é porque historicamente as mulheres sempre foram obrigadas a dizer o que elas estavam sentindo nas entrelinhas, porque os homens não permitiam que elas dissessem diretamente o que elas queriam, então elas foram obrigadas a dizer as coisas mais metaforicamente.”

Onde antes predominavam valores tradicionais ligados às práticas sociais e culturais do patriarcado, hoje, inúmeras outras visões sobre o que é ser “mulher” rompem com a lógica até então vigente. Como consequência, esse movimento também ganha força na literatura.

Assim, alguns valores acabam sendo rompidos ou mudados à medida que a sociedade também se transforma.

Como aborda Luísa Lobo, “A gente na verdade vai chegar a uma conclusão que feminino e masculino são clichês da nossa sociedade, nós encaixamos as pessoas ali e nos chocamos quando ela não preenche aquele papel, mas não tem nada de fixo nisso e isso vai caminhando junto com a sociedade.”

Mas a mulher, antes de romper paradigmas rumo a um novo futuro, também retorna.

O Ciclo

“A mulher, quando ela fala, quer dizer que ela traz no seu ventre a mãe-terra. A natureza quer falar através das suas linhas, das suas palavras, da sua alma. Ela traz na sua alma essa guerreira, essa mulher ancestral, essa mulher selvagem no sentido puro da palavra.”

Eliane Potiguara

Mesmo que não seja intencional, a escrita feminina tem em si um enorme potencial de transformação. Porque quando uma mulher escreve, ela faz emergir inúmeras outras mulheres que nos trazem perspectivas muitas vezes ignoradas.

Dalva Martins de Almeida comenta que “A Virginia Woolf propõe que a mulher precisa escrever, a mulher precisa mostrar a sua voz para dar conta das várias identidades que a gente quer construir, que a gente precisa construir dessas mulheres, brancas, negras, classe média, classe baixa.”

Por isso, trazer as perspectivas das mulheres em sua diversidade é como fazer um retorno para dentro de si. É voltar à ancestralidade, buscar histórias de tempos longínquos ou retomar maneiras de pensar e enxergar o mundo que ficaram perdidas no tempo, soterradas embaixo das imposições patriarcais.

A escrita da mulher permite a ampliação de pontos de vista porque ela não vem sozinha, ela traz todas as outras. Ao fazer esse movimento, ela também se torna a senhora de sua própria vida, criando seus próprios modelos de conduta e maneiras de pensar a si mesma e a sociedade.

Quantas histórias há dentro de cada mulher? Quantas personagens? Quantas delas tiveram suas histórias narradas? Quantas dessas narrativas dialogam com as histórias de outras mulheres?

Essas histórias encontram seu caminho quando uma escritora se empenha em narrá-las. Como diz Conceição Evaristo, “Eu acho que o texto literário para ela é aquilo que ela já escreveu anteriormente, já está escrito nela, aí um dia ela tem a possibilidade de passar isso para o papel, mas já está escrito há muito tempo.” 

O Mundo e a Escrita

“A feminilidade que eu vejo presente na escrita, é a feminilidade desse silêncio. Quando eu me destituo de tudo que eu acho que eu sei, de tudo que eu aprendi, eu sou contemplada com algumas palavras que tem mais a ver com escrita e literatura. Palavras que podem se tornar um escrito. É passividade nesse sentido. É mais feminilidade nesse sentido. Por outro lado, eu acho que pra escrever é preciso mais força e é preciso se atirar no precipício.”

Sandra Niskier

Se a escrita é feminina, a mulher que atende a esse chamado interno dá as mãos para o silêncio. Ao seu lado, ela consegue ouvir as vozes que habitam dentro dela. Entretanto, como observa Niskier, colocar as palavras no mundo também exige ação.

Essa parte ativa e expansiva também existe na mulher. A escrita dela manifesta todos esses caminhos e possibilidades de “ser”.

Mulheres significando seus olhares, rompendo antigos paradigmas, trazendo do íntimo a vida que irá tomar seu curso no mundo… tudo como um ciclo em seu eterno retorno.

Assim, o ambiente externo vai aos poucos alimentando novos pensamentos, os quais farão emergir outras formas variadas de ver e viver a vida.

Ao ampliarmos os olhares, as vozes e as personagens, trazemos para o espaço de poder as mulheres negras, as mulheres trans, as mulheres indígenas, as mulheres brancas, cada qual com seu movimento interno e externo, retornando às memórias para fazer emergir histórias de personagens que vão inspirar vidas.

 O Encontro

“Assim como o fato de eu ser mulher me coloca em qualquer situação na vida, também me coloca em relação à escrita e a forma que o sistema me trata por ser mulher também influencia a minha escrita, nem chamaria de influência, eu acho que determina mesmo.”

Alice Ruiz

Os olhares das mulheres sobre o mundo são múltiplos e passam pelo filtro de “ser mulher”. A literatura feminina é rica porque traz essas múltiplas perspectivas, em especial da mulher sobre si mesma.

A escrita feminina é passiva e internalizada, como salienta Sandra Niskier, mas também é ação.

As mulheres retratadas pelas diversas escritoras também são as mulheres selvagens do imaginário vivo e real de Eliane Potiguara.

Elas são fortes, corajosas e determinadas e tem orgulho de serem mulheres, a exemplo de Marina Colasanti.

É na escrita que mulheres como Conceição Evaristo encontram-se com elas mesmas.

Como Luísa Lobo, elas não aceitam que o mundo diga a elas como elas devem ser, ou como devem se portar. 

Elas criam o seu próprio mundo!

Elas compreendem o jogo da vida e jogam quando preciso, mas preferem brincar.

Como em uma ciranda de palavras, que aos poucos vai reconstruindo uma história; como em uma colcha de retalhos feita dos mais variados tecidos, o que se constrói é individual e, ao mesmo tempo, coletivo.

A literatura feminina não pertence apenas à uma mulher que escreve. Pertence ao encontro de mulheres que escrevem e mulheres que se encontram consigo mesmas ao embarcar na viagem que a literatura promove.

A exemplo de Noemi Jaffe, também nos perguntamos: “Quantos olhos cabem numa mulher?” Nunca chegamos à resposta definitiva porque sempre aparece mais um olhar. 

Às vezes, aquele olhar que estava bem escondidinho por medo ou vergonha e que agora faz questão de existir no imaginário de todas as outras, estabelece um elo de compreensão e empatia.

Como Jaffe, Dalva Martins de Almeida fala da importância de haver cada vez mais mulheres na escrita, mulheres de diferentes classes sociais, diferentes raças e etnias. Afinal, compreender a literatura feminina é não se limitar à uma única visão de mundo.

Mas a escrita, é feminina. Marina Colasanti diz: “Eu acho que a escrita é feminina, porque a primeira ferramenta de um escritor, o primeiro utensílio é o olhar e o olhar sobre o mundo tem gênero. (…) Eu vejo o mundo com olhos de mulher e eu tenho uma posição no mundo de mulher, esmagada pelos preconceitos, batalhando, sobrenadando a inferioridade que querem me impor, mas eu sou uma mulher.”

Embarque nessa viagem e passeie por esses variados olhares no episódio “Mulher”, primeiro da série “Literatura, Substantivo Feminino”. Estreia 10 de outubro no CinebrasilTV.

Assista ao trailer: