Mulheres Negras – Literatura, Substantivo Feminino

Se ao longo da história humana a jornada da mulher foi marcada pela invisibilidade, quando se trata da mulher negra, o problema é ainda mais acentuado. Isso é ainda reforçado pela ampla exposição à violência e à humilhação, oriundas do processo de escravidão e racismo no Brasil. A sociedade brasileira foi construída sob um imaginário que coloca negras e negros em um lugar de inferioridade, isso é fato.

Há pouco tempo, quando encontrávamos uma mulher negra retratada em uma obra literária, ela estava normalmente em uma condição de subalterna, realizando serviços domésticos, reforçando uma perspectiva social que salienta a falta de compromisso do Estado e da sociedade para com a causa negra, uma sociedade que negava o acesso à instrução e a igualdade de direitos entre raça e gênero.

Os movimentos negros fizeram e ainda fazem sua parte, mas a luta ainda continua. Os avanços têm relação com o protagonismo da mulher negra na escrita literária, ou seja, trata-se de fomentar o espaço para a presença de mais escritoras negras e personagens que fogem aos estereótipos impostos pelos brancos.

Esse processo foi e continua sendo de muita luta. O conhecimento e o saber não eram acessíveis às mulheres, muito menos às mulheres negras. Mesmo assim, no Brasil oitocentista, Maria Firmina dos Reis, negra e escritora, primeira romancista brasileira, se empenhou no ensino das letras, fundando uma escola mista e gratuita às crianças mais pobres, batalhando pela igualdade na formação educacional de negras e negros.

Se, por um lado, o negro é retratado na literatura em condições subalternas, o primeiro romance de Maria Firmina se torna um marco da literatura negra no Brasil, não apenas por ser o primeiro romance escrito por uma mulher negra, mas por trazer uma perspectiva diferente da que era propagada. Em “Ursula”, a escritora faz denúncias do cotidiano dos escravizados no Brasil e das condições às quais eram submetidos.

No final do século XIX, mais mulheres passaram a exercer a função da escrita, mesmo a contragosto da maioria dos homens. Assim, as mulheres ocuparam colunas de revistas e jornais, publicaram contos, crônicas e romances.

Entramos no século XX e a luta pela ocupação desse espaço seguia. Carolina Maria de Jesus escreve “Quarto de Despejo”, obra conhecida mundialmente, na qual a autora relata sua rotina na década de 50 e as dificuldades que enfrentava na vida, dificuldades essas compartilhadas por outras negras brasileiras.

Uma lista extensa de mulheres negras e homens negros passam a se destacar em diversos âmbitos da sociedade, mas essa história não foi devidamente contada nem pela mídia e nem tampouco pelas cartilhas disponibilizadas nas escolas.

É pela ocupação desse lugar que tantas mulheres escritoras negras brasileiras lutam. Um lugar de protagonismo, um lugar de liderança, de saber, de fortalecimento econômico, social e cultural. O racismo precisa ser enfrentado durante todo esse processo, afinal, ele é vivenciado o tempo inteiro, estejamos ocupando essas posições ou não.

“Mulheres Negras” é o nono episódio da série “Literatura, Substantivo Feminino”. Acompanhe as falas de Conceição Evaristo, Meimei Bastos, Ana Maria Gonçalves, Cristiane Sobral, Heloisa Pires Lima, Rosália Diogo, Dalva de Almeida e Neide Vieira.

A Mulher Negra na História da Literatura

“Eu costumo dizer que existe uma marca divisória, de 78 para cá, na literatura negra de uma forma coletiva. Porque não era só São Paulo, era São Paulo, era Rio, era Bahia, Espírito Santo.”

Miriam Alves

As escritoras negras brasileiras empenham suas energias em criar uma literatura que abale o discurso hegemônico, a fim de descolonizar os paradigmas da sociedade em que vivemos.

Elas colocam em pauta os contextos sociais, culturais, históricos e políticos para discutir a violência, a pobreza, o racismo e o corpo negro, especialmente o corpo da mulher negra que é objetificado, hiper sexualizado e superexposto nas mídias.

Nesse sentido, muitas autoras quebram com o conceito vigente, como Conceição Evaristo, que traz em seus livros personagens negras que são independentes, inconformadas e insubmissas. 

“A minha sensibilidade para a poesia, para a arte, eu tenho dito que é muito a partir de uma carência material que a gente vivia (…). Então essa experiência, essa carência ela de certa forma também induz um ato criativo. Como minha mãe criava na própria luta pela sobrevivência, ela criava arte. Hoje eu fico vendo que a minha mãe fazia conosco “oficina da palavra” só que ela nem sabia o que ela estava fazendo.”

Conceição Evaristo

A falta de referências positivas da mulher negra na literatura não impediu que Conceição Evaristo observasse a mãe e trouxesse todo o seu protagonismo para sua escrita. As mulheres negras exercem funções que foram imprescindíveis para o desenvolvimento da sociedade brasileira, mesmo tendo que enfrentar a estrutura racista do país e não sendo reconhecidas por isso.

Quando a escritora faz esse movimento, o de apresentar na literatura mulheres negras que não se calam, está recuperando o direito de contar sua própria história e de seu povo, contrariando a perspectiva dominante do “outro” sobre o corpo negro. Dalva de Almeida reforça:

“Quando o negro chegou pela diáspora, chegou aqui no Brasil, como na América, como em outros lugares, ele sempre foi tido como a sub-raça. Essa ideia de produto de sub-raça, de animalização, é transportada para a ficção.”

Dalva de Almeida

Dalva de Almeida reflete sobre o fato de que o pensamento sobre a mulher negra e sobre o homem negro na sociedade foram introduzidos pelo homem branco, inclusive dentro da literatura. Como reforça Meimei Bastos:

“As nossas histórias foram contadas por outros e esse espaço da escrita foi negado para a gente por muito tempo, muito tempo. Eu não posso negar uma conquista dos meus ancestrais, dos que vieram antes de mim, se eu não me reconhecer. Isso sou eu, Meimei falando, se eu não reconhecer esse lugar, se eu não ocupar esse espaço mesmo, eu estou invalidando toda uma luta que veio muito antes de mim.”

Meimei Bastos

Um dos maiores desafios dessas escritoras, que criam uma literatura negra e comprometida com as questões da comunidade negra, é romper com o paradigma de que “não existe racismo no Brasil”. Dalva de Almeida observa:

“Foi incutido um mito da democracia racial em que todos somos iguais, é o modo brasileiro de combater o preconceito, mas na verdade não é, não combate. Esse mito da democracia racial brasileira embute uma situação de racismo, porque tenta mostrar que no Brasil não há racismo, todo mundo é igual. Mas na verdade nós não temos as mesmas oportunidades.”

Dalva de Almeida

A Literatura da Mulher Negra

A história da literatura brasileira, no que se refere à presença da mulher negra, levanta dois espaços: o da escrita, com as autoras; e o das personagens.

Essas informações são importantes porque, quando uma escritora se afirma como mulher negra, ela está se contrapondo à visão hegemônica da qual falamos anteriormente, e então se comprometendo em não silenciar a voz de uma mulher negra. Cristiane Sobral explica:

“Quando a gente se afirma como autora negra, a gente está demarcando também uma posição que é política no sentido de dar visibilidade a outras mulheres negras. (…) Então infelizmente nós ainda vivemos um momento em que é preciso afirmar para existir, a afirmação ela também é uma estratégia de sobrevivência.”

Cristiane Sobral

Sabendo do que passou e do que ainda está por vir, Heloisa Pires Lima embarcou na literatura com um compromisso claro em mente.

“A minha origem africana foi muito vilipendiada, então meu trabalho como mulher negra e que escreve para crianças, é não perder isso de vista, que é importante você ampliar o imaginário para essa geração que está vindo aí.”

Heloisa Pires Lima

A literatura da mulher negra é comprometida com as questões de seu povo, com a ocupação de um lugar que foi negado e com a preparação de um terreno para essa e para as futuras gerações. A literatura da mulher negra recheia o nosso imaginário de referências positivas, resgata a ancestralidade e recupera o corpo e a história negra.

“Reconhecer ‘autora negra’ no campo literário brasileiro é extremamente importante porque foi um campo negado aos meus ancestrais, aos que vieram antes de mim, a conquista deles se deu por muita luta, eu não posso negar esse espaço, eu não posso negar esse lugar.”

Meimei Bastos

A Ocupação do Espaço Literário por Mulheres Negras

“Quando a gente fala do mercado editorial, a gente fala de muita coisa, a gente fala de grandes editoras que ainda não privilegiam escritoras negras. Quando a gente entra nas livrarias, basta pensar qual foi a última livraria que eu visitei, quando a gente entra a gente já observa que a maioria dos títulos que estão expostos são títulos de autores estrangeiros. O simples fato de ser um escritor brasileiro já é difícil, então quando a gente fala de uma escritora mulher que é negra, aí a coisa fica mais complicada.”

Cristiane Sobral

A ocupação do mercado editorial pelas mulheres negras têm ocorrido cada vez com mais frequência, mas ainda está longe da situação ideal. Ana Maria Gonçalves fala também sobre a mudança das perspectivas das editoras:

“Durante muito tempo elas ignoraram essas vozes digamos periféricas, e não perceberam a demanda que existe para essas vozes. (…) Eu acho que esse público hoje em dia tem sustentado uma boa parte do mercado e tem ameaçado sim as grandes editoras.” 

Ana Maria Gonçalves

Quando falamos sobre ocupação do espaço, ele não é só editorial e mercadológico. Parte também de um processo pessoal da mulher negra reconhecer o que a sociedade faz com seu protagonismo, e ainda assim lutar para se colocar, para desenvolver sua arte. O espaço da mulher negra está em todas as esferas de poder, onde ela quiser chegar, e a literatura negra fortalece isso.

Neide Vieira já recitava para o amigos muito antes de se apresentar em um evento. O primeiro Slam da Bahia foi seu primeiro palco, e na batalha a poetisa ficou em segundo lugar.

Slam são batalhas de poesias faladas. O movimento surgiu nos anos 80, nos Estados Unidos, e tem ganhado cada vez mais força no Brasil nos últimos anos.

Sobre o seu primeiro Slam, Neide Vieira relembra:

“Eu estava muito feliz porque tive um espaço onde eu poderia falar de preto para preto, contar nossas histórias, onde pessoas me deram credibilidade, onde pessoas sentiram representadas, então isso era o mais importante.”

Neide Vieira

Rosália Diogo define:

“O que é literatura negra, grosso modo, eu posso dizer é uma literatura produzida sobre negros, ou esses personagens negros tenham visibilidade, ou produzida por pessoas negras.”

Rosália Diogo

Mesmo como uma afirmação clara e assertiva, a definição de Rosália Diogo nos diz muito sobre o que representa os negros e as negras na sociedade: criatividade, sabedoria, inteligência, resistência, ancestralidade, protagonismo e mais uma série de adjetivos positivos que aos poucos vamos reforçando na comunidade.
Acompanhe o nono episódio “Mulheres Negras” da série “Literatura, Substantivo Feminino”!