A identidade brasileira é fruto da miscigenação forçada. Podemos afirmar, como Padre Antônio Vieira, que o brasileiro foi forjado no cadinho da fornalha ardente do engenho.
O fogo ardeu mais nos africanos, que foram sequestrados em sua terra. Mulheres e homens alienados de seu contexto, sua história, para servir a tiranos travestidos de homens de bem.
Porém não lhes roubaram a essência de sua existência. Consigo trouxeram a religião, o culto que lhes renova a força e os transmitia o sentido da vida. Encontravam, ali, no axé, seu ponto de partida.
Entre as práticas mais importantes, destacamos o culto às yabás, orixás femininos, genitoras da existência, protetoras da vida. Deusas personificadas nas lutas das mulheres escravizadas que batalhavam pela dignidade e driblavam a tirania.
Neste artigo apresentaremos a vinda, forçada, dos africanos para o Brasil. Evento que fez germinar, em Terra de Santa Cruz, os ritos de matriz africana, dos quais destacamos o culto às yabás. E, de modo especial, mostraremos a história de Ewá, a deusa dos horizontes.
Escravização dos Africanos no Brasil
O processo de escravização transatlântica arrancou homens, mulheres, crianças e velhos de diferentes regiões da África, esses mesmos sujeitos desembarcaram em diversos lugares das Américas, incluindo o Brasil.
Chegando em terras brasileiras essas pessoas foram confrontadas com uma cultura, religião e ambiente muito diferentes do que estavam acostumados. Mas isso não fez com que o seu novo modelo, imposto, de vida em terras brasileiras, mudasse suas culturas e práticas.
O efeito foi o contrário, eles se apegaram fielmente às suas crenças e religiões e passaram a viver o seu culto nas senzalas, fazendas e demais territórios que estavam ocupando. As mulheres, nesse aspecto, destacaram-se bastante, embora estivessem vivendo no regime de escravização elas revelavam uma força e uma sabedoria inigualável.
Mesmo diante de muito trabalho, não deixaram perecer a sua essência. Elas trabalhavam de ganhadeiras, quituteiras, lavadeiras, as chamadas escravas de ganho. Ainda havia aquelas que trabalhavam na lavoura, plantando colhendo cana-de-açúcar e café. Bem como as domésticas: que eram amas de leite e cuidavam dos filhos dos senhores, além dos afazeres e da alimentação da Casa Grande.
Mas, independentemente de onde estivessem, essas mulheres eram possuidoras de uma sabedoria inigualável, presente dado pelos deuses, ou melhor, pelas deusas.
O Culto às Yabás
As Yabás são as deusas africanas que sustentaram e deram forças para que os povos africanos, e principalmente, as mulheres africanas, que estavam presentes no Brasil tivessem força, sabedoria e coragem.
O termo yabá ou iabá, se origina do iorubá e quer dizer “mãe rainha”. No Brasil esse termo tem uma relação íntima com os Orixás femininos, dentre elas, as mais conhecidas e cultuadas no Brasil são: Nanã, Oxum, Iemanjá, Iansã, Obá e Ewá.
As yabás possuem domínio sobre os diversos elementos da natureza, elas são cheias de axé, a força vital que move e sustenta o universo. Elas não são consideradas más, nem boas, são repletas de uma força que pode ser motivada de maneiras e em condições diferentes.
O culto e os ritos relacionado às deusas africanas chegaram ao Brasil juntamente com seu povo, aqui esses cultos sofreram algumas mudanças e ressignificações, mas não deixaram de ser realizados.
Nos Terreiros de Candomblé, e de tantas outras religiões de origem afro-brasileira, o culto às yabás possui extrema importância além de ser bastante respeitado. Pois a relevância feminina para essas religiões é inegável, tanto que as principais sacerdotisas e líderes religiosas do Candomblé e Umbanda são mulheres. Herdeiras das yabás, personificam a força, a energia que as sustentam e as ajudam a manter a fé e a religião vivas.
Das yabás, as mulheres africanas recebem força, sabedoria, audácia e determinação. Bem como o ânimo para lutar e resistir diante do sequestro em suas terras para serem exploradas no Brasil.
Ainda hoje, as yabás sustentam as mulheres negras brasileiras, para que elas continuem trilhando caminhos de prosperidade, esperança e sabedoria.
Ewá, rainha dos horizontes
Ewá, orixá feminino, é a deusa da vidência, protetora das virgens e das matas intocáveis, senhora das possibilidades, que têm uma estreita relação com as águas doces, com a névoa e com a neblina.
Embora ela seja uma orixá conhecida no Brasil, seu culto não sobreviveu em todos os Terreiros e casas de religiões afro-brasileiras. Isso provavelmente aconteceu porque sua celebração envolve rituais específicos e complexos. E, certamente, não ficaram guardados com todos os detalhes na cabeça dos homens e mulheres da religião. De maneira que somente algumas pessoas, mais velhas, sabem ao certo como cultuar e celebrar Ewá.
Origem de Ewá
Filha de Nanã com Oxalá, Ewá tem como símbolo a serpente, que é menor do que a serpente que representa Oxumaré. Carrega consigo elementos como a espada, o ofá (o arco e flecha usados na guerra), o arpão e a lira, além disso, assim como seu irmão Oxumaré, Ewá também possui a energia do arco-íris.
Ewá quer dizer mãezinha do caráter, é conhecida pelo seu sexto sentido. Dona do mundo, dos horizontes, rainha do cosmo e do nevoeiro, dizem que quem a desafia e a enfrenta perde os rumos da vida e nunca mais se encontra, no entanto, aqueles que a cultuam e guardam seus preceitos nunca se perdem em seus caminhos.
Equilíbrio e Sabedoria
Ewá não se altera com suas relações e experiências com outras pessoas, sejam elas positivas ou negativas, ela nunca é dominada por suas emoções ou pela emoção de outras pessoas, sendo invulnerável nos relacionamentos e intocável nos sentimentos.
Deusa que é símbolo de sabedoria, de sensualidade, de uma beleza específica e encantadora. É protetora das matas e dos rios, é considerada como pura e sábia, no entanto, não é ingênua. Ao contrário, Ewá é muito esperta, perspicaz e não se permite enganar. Coragem não lhe falta, é uma grande guerreira.
As Filhas de Ewá
Ewá só possui filha de santos, isso quer dizer ela só incorpora em mulheres durante os seus rituais religiosos. As filhas dessa orixá possuem uma beleza estonteante, costumam ser mulheres bastante sociáveis, calmas e joviais.
As filhas de Ewá, possuem uma dupla personalidade, isto é, ao mesmo tempo que se mostraram simpáticas, também podem ser arrogantes e rudes. Além disso, elas costumam ser apegadas a dinheiro e a riquezas. Gostam de ostentar e estão sempre bem vestidas e apresentáveis.
Os símbolos e o ebó de Ewá
As cores da deusa guerreira são: o rosa coral, o rosa e o vermelho vivo. Seus colares são vermelhos e dourados. Aqueles que querem saudá-la devem dizer Ri Rô Ewá, que quer dizer: “doce e branda Ewá.”
Suas comidas e oferendas são: feijão fradinho, feijão preto, banana da terra, camarão seco e batata doce. Já a galinha nunca deve ser ofertada a Ewá, pois ela é sua quizila, isto é, esse alimento que causa uma reação contrária ao axé.
A deusa que enganou a morte
Essa orixá é tão poderosa e astuta que já enganou até a morte, isso mesmo, Ewá chegou a enganar a morte. Ela estava lavando as suas roupas à margem do rio Yewá com sua grande gamela.
De repente, notou que um homem corria desesperado em direção ao rio, era Orunmilá, quando ele se aproximou, a deusa o perguntou: “o que houve senhor, porque está desesperado assim? Do que estás fugindo?”
Orunmilá respondeu: “hã, hã”. E como Ewá tinha um grande poder de vidência, ela disse: “foges de Iku, a morte”, “sim” respondeu ele.
Foi então que Ewá colocou Orunmilá embaixo de sua grande gamela e continuou lavando sua roupa alegremente, quando Iku chegou perto dela, cansada de tanto correr e aparentando como somente a morte pode aparentar, perguntou se ela havia visto Orunmilá.
Ela respondeu que ele tinha atravessado o rio e àquela hora já deveria estar bem distante. Depois que a morte foi embora, Ewá tirou Orunmilo debaixo de sua gamela o ajudou e cuidou dele.
A força das yabás presente na luta das mulheres de ontem, de hoje e de amanhã
Religião é mais que uma palavra, é uma ação. Significa religar, em princípio ao transcendente. Porém é uma ligação perene com a origem presente na essência de cada pessoa. É muito fundamental para cada mulher e homem africanos que foram subjugados em terras estranhas.
O culto às yabas personificam a busca de sentido diário para vencer a violência do opressor e o banzo que consumia por dentro. Deusas como Ewá são a configuração da esperteza e poderes da grande guerreira.
As mulheres africanas trazidas para o Brasil, e posteriormente as mulheres negras e brasileiras, certamente aprenderam muito sobre força, sabedoria e esperteza com Ewá, sem sombra de dúvidas ela deve ser é um espelho de inspiração para essas mulheres, afinal, as yabás são rainhas, guerreiras, protetoras e inspiradoras.
Referências bibliográficas:
CUNHA, Mariano Carneiro da. A feitiçaria entre os Nagôs-Yorubá. Revista Dédalo. Museu de arqueologia e etnologia, USP. São Paulo, n.23, 1884.
MARIOSA, Gilmara Santos. O Reino das Yabás: Participação de mulheres negras no Candomblé. Monografia (especialização em Gênero e Diversidade) Universidade Federal de Minas Gerais: Belo Horizonte, 2015
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das letras, 2001
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