Primeiras letras – Literatura, substantivo feminino

“Minha avó era uma verdadeira biblioteca de literatura oral, minha tia tinha um repertório de conto de fadas enorme. Às vezes a gente caminhava na praia, na beira do mar, de noite. Quando era noite de lua cheia e estava claro, ela ia pelo caminho contando histórias.”

Ana Maria Machado

Nas lembranças da infância, Ana Maria Machado rememora vivências que a estimularam a embarcar no universo da literatura. Nessas memórias, ela revisita o contato com seus familiares e a perpetuação das narrativas orais, que são passadas de geração para geração.

As primeiras letras e palavras na vida de uma escritora surgem da literatura oral, da narrativa de histórias que não estão necessariamente nos livros, mas nas vivências com os familiares. Com o passar do tempo, o contato com a literatura se desenvolve das formas mais variadas até chegar à escrita.

Mais do que as primeiras referências literárias, o que as levou a embarcar nesse universo foram essas vivências, aquelas da infância. São experiências  marcantes que impactam a vida de todo ser humano. São memórias que estimulam o imaginário, preenchem nossa vida de sonhos e abrem possibilidades até então desconhecidas.

Nesse episódio de Literatura, Substantivo Feminino as escritoras entrevistadas falam sobre as suas  “Primeiras Letras”,  não necessariamente as que produziram, mas as que impactaram suas vidas e as levaram para a aventura literária.

Miriam Alves, Heloisa Pires Lima, Cristiane Sobral, Lilian Fontes, Ana Maria Machado, Lúcia Bettencourt, Marcia Kambeba, Eliane Potiguara, Nélida Piñon, Susana Fuentes, Ana Beatriz Manier, Luciana Hidalgo, Maria Valéria Rezende, Noemi Jaffe, Beatriz Bracher, e Conceição Evaristo compartilham conosco as experiências vividas no início dessa jornada literária nesse quarto episódio da série.  

Como tudo Começou

A leitura de Conceição Evaristo começa na observação das lágrimas de sua mãe.

“Eu ficava muito atenta às feições dela, eu ficava muito querendo saber o porquê disso tudo e, olhar minha mãe, de certa forma, era contemplar o mundo. Talvez nesse exercício de contemplar minha mãe, de contemplar o mundo, de contemplar ao redor de si, me deu essa capacidade, esse gosto de ficar assuntando as coisas. Eu gosto muito de ficar assuntando as coisas, de olhar as pessoas e sem sombra de dúvida eu aprendi muito com ela.”

Conceição Evaristo

Como Ana Maria Machado nos conta, seus avós e sua tia eram algumas das bibliotecas que faziam parte de seu cotidiano. Isso fez com que a futura escritora tivesse acesso a um repertório vasto de histórias em sua infância. Como testemunhas dessas narrativas estavam ali a natureza, o mar, a lua e as estrelas.

A memória que Ana Maria Machado acessa nos transporta para as comunidades interioranas, rurais, ribeirinhas e caiçaras. 

São histórias que soam como “causos”. Cada vez que alguém reconta, a narrativa  ganha um colorido diferente, como se fosse uma nova história vivida por quem está narrando, e escutando. A narrativa oral é antiga e atravessa o tempo.

Em diversas regiões da África, griote ou jeli são as mulheres cuja vocação é preservar e transmitir as histórias, lendas, mitos, canções e conhecimentos de um povo. 

Durante muito tempo, as histórias eram passadas de geração para geração através da tradição oral. Quando passamos essas histórias para o papel, surge o registro que fomenta a oportunidade de compartilhamento dessas histórias com pessoas que estão distantes.

Também é uma forma de preservar essas memórias.

Representando a cultura indígena, Márcia Wayna Kambeba, que nasceu em uma aldeia ticuna, lembra das histórias que ouvia desde criança. Inspirada por essas narrativas, Márcia começou  a escrever aos 14 anos.

“Se hoje eu sou compositora e escrevo poesias, vem das veias da minha avó.”

 Márcia Wayna Kambeba

Eliane Potiguara relembra as cartas que escrevia para sua mãe. A mãe narrava e Eliane escrevia. Mas enquanto a ouvia e registrava, Eliane Potiguara lia as suas lágrimas. A intensidade dos sentimentos da mãe trazia a carga da ancestralidade, algo que a escritora sempre traz em suas obras.

“Eu tive toda essa iluminação (…) que na realidade não é minha, pertence sim a essa ancestralidade que eu trouxe para esse século.”

Eliane Potiguara

Também como uma Griote, Miriam Alves transmite as histórias que ouvia para os filhos, e espera que eles recontem para os netos, permitindo que as histórias avancem no tempo.

Essa continuidade reforça a ideia de ciclo, uma estrutura de perpetuação narrativa bem feminina em seu aspecto ancestral.

Lúcia Bettencourt também ouvia histórias dos avós e, desde muito nova, se empenhou em aprender a ler rápido. Seu esforço era recompensado com livros que ganhava no fim do ano.

“Eu fui criada por duas pessoas que gostavam muito de contar histórias, meu avô e minha avó, e eu passei a descobrir os livros.”

Lúcia Bettencourt

A transição da oralidade para a escrita é um período cheio de descobertas que vivenciamos na  infância.

Noemi Jaffe também ganhava livros de presente, e o interesse pela leitura e pela escrita ocorreu, mesmo sem que ela saiba ao certo “como” ou “porque”.

“Então parece que o meu interesse pela leitura e pela escrita foi espontâneo, alguma coisa que eu não sei dizer de onde veio, mas desde muito pequena eu amava ler, precisava ler. Eu tinha um tio que me dava sempre livros de aniversário, eu não via a hora de chegar a hora da data do meu aniversário para poder ganhar os livros de presente.”

Noemi Jaffe

A influência dos familiares contribuiu para o interesse dessas futuras escritoras. A filha da Marina e do Jacinto, Cristiane Sobral, recebeu influência direta dos pais na aquisição do hábito da leitura e no interesse por livros

“Então mamãe teve uma contribuição no meu processo de alfabetização, que para mim, o processo de alfabetização ele foi concebido no meu lar. A gente aprende a ler na escola, mas para mim teve esse momento precioso.”

Cristiane Sobral

Na infância de Maria Valéria Rezende também havia muita influência da família para a aquisição de seu hábito e interesse pela leitura.

“Eu comecei a ler muito antes de me alfabetizar, porque eu sou 10 anos mais velha que a televisão. Eu tive a sorte de nascer numa família, que tanto do lado paterno, quanto do lado materno, havia escritores, publicavam-se livros. O que a gente fazia depois do jantar, era sentar na varanda, no verão, e diziam-se poemas, liam-se poemas, liam-se contos, liam-se um romance capítulo por capítulo.”

Maria Valéria Rezende

No aconchego do lar, Ana Beatriz Manier tentava se afastar do frio do Sul ao lado das palavras que ouvia de sua mãe.

“A minha mãe passava a cama da gente a ferro, passava a fronha de travesseiro a ferro porque era muito frio no Sul e aí ela sentava na cama, começava a ler histórias para gente, para mim e para minha irmã. Ao mesmo tempo que eu estava em uma cidade muito fria, essa lembrança minha é muito calorosa e eu acho que esse gosto pela escrita e pela leitura começou aí.”

Ana Beatriz Manier

Ouvir histórias que davam asas à imaginação foi o primeiro passo para estimular o interesse dessas futuras escritoras pela escrita. 

As Primeiras Letras e Palavras Escritas

A neta do escritor Amando Fontes, Lilian Fontes, lembra-se de uma infância marcada por visitas de outros escritores em sua casa. Aquela realidade, de receber pessoas ilustres, pode ter impressionado a menina, mas Lilian provavelmente também impressionava Manuel Bandeira ao decorar seus poemas e recitá-los para o escritor.

“Eu comecei a ler poesia muito jovem, 7 anos, 8 anos, eu já lia Manuel Bandeira, eu queria decorar Manuel Bandeira, para quando ele chegasse na casa do meu avô eu recitar para ele as poesias dele. Tinha aquela festa “olha lá, ela recitou”.

Lilian Fontes

Da narrativa verbal foi um passo para a escrita de Lilian Fontes. À exemplo de seu avô, a escritora sempre se interessou em escrever histórias que não tinha vivido, histórias imaginadas.

Para a menina Nélida Piñon, as histórias não vinham da imaginação, mas de algum lugar da realidade.

“Julgava que os livros que eu lia, as histórias nasceram da experiência do escritor e não da invenção do escritor, então eu queria ser escritora para poder desfrutar das delícias do mundo.”

Nélida Piñon

Ouvindo as histórias da infância dessas escritoras, imaginamos que todas elas gostavam de ler desde crianças. Beatriz Bracher traz uma experiência oposta que pode estimular muitas pessoas que não gostam de literatura a se apaixonarem por ela.

Na minha casa os meus pais liam, meu irmão mais velho lia e eu não gostava muito de ler na verdade.”

Beatriz Bracher

Quando foi morar fora do país e tive contato com o livro Boi Aruá, Beatriz Bracher não parou mais de ler.

“Como se eu tivesse encontrado um lugar especial enquanto eu estava lendo, um espaço que eu me sinto até hoje muito bem.”

Beatriz Bracher

A Formação da Escritora

Ouvir histórias exercita a nossa imaginação. Cada história que ouvimos se constrói em nosso imaginário. Mas, escrever histórias é um pouco mais complexo. 

A escritora Luciana Hidalgo queria dominar o sistema de códigos o quanto antes.

“Desde pequena eu acho que fui meio tarada pelas palavras, quase uma maníaca por palavras, eu aprendi a ler antes dos 4 anos praticamente sozinha, a partir daí comecei a ler tudo, placa na rua, letreiros, embalagens de biscoito.”

Luciana Hidalgo

A paixão de Heloísa Pires Lima foi despertada pelo livro em si

“Eu tenho um amor assim muito grande pelo livro, o primeiro livro que eu li, eu lembro que me apaixonei, o primeiro livro que eu li não, eu tenho lembranças de livros, eu devia ter uns 3, 4 anos, lendo no chão no assoalho de madeira como era em casa.”

Heloísa Pires Lima

As páginas de um livro, as letras, cada palavra. Segurá-lo nas mãos e ir folheando enquanto a imaginação passeia pela narrativa. Essa é uma sensação que muitos leitores ávidos compartilham.

Entre outros livros que acompanharam Susana Fuentes, estava um diário. A escrita de Susana trouxe uma coletânea de contos e poemas. 

“Muitas vezes também para ter coragem para fazer alguma coisa, eu primeiro escrevia e quando aquilo então aparecia para mim no papel, eu falava “isso é possível”, então eu posso ser isso que eu coloquei no papel, eu posso fazer aquilo que está ali.”

Susana Fuentes

Acompanhando as “primeiras histórias” da vida dessas escritoras, verificamos o início da presença da literatura, e como esse contato contribuiu para os caminhos percorridos por elas.

Assista ao quarto episódio, “Primeiras Letras”, da série Literatura, Substantivo Feminino e saiba mais sobre as primeiras histórias que impactaram as vidas dessas escritoras, levando-as à aventura literária.