Rastros do Carnaval

Elas sempre estiveram por lá, mesmo quando não víamos. Cada lantejoula e renda costurada à mão na fantasia, cada trajeto percorrido para a arrecadação de recursos. Cantos ecoados pela garganta, poesias melódicas marcando o ritmo da avenida. Seus corpos, outrora invisibilizados, estão em todos os setores e atividades da maior festa popular brasileira: a mulher, no Carnaval.

Para percorrer esse trajeto retornaremos à Portugal, a fim de localizar o percurso da brincadeira que veio para o Brasil no século XVII, o entrudo. No Brasil, a prática se tornou tão popular que até meados do século XIX, era uma das maiores manifestações festivas do período carnavalesco. Consistia em um encontro de pessoas para dançar e realizar brincadeiras como as molhadelas, em que águas de cheiro eram jogadas nas pessoas.

O entrudo era realizado nos dias anteriores à Quaresma com participação de todas as camadas sociais, cada qual à sua maneira. Nas camadas mais altas, o entrudo familiar, que excluía a participação de pessoas escravizadas e de classes sociais populares, a menos que fossem para suprir essas famílias com os artefatos que utilizavam nas brincadeiras, as brincadeiras ocorriam dentro de casa, entre familiares e amigos mais abastados. As camadas sociais mais humildes faziam o entrudo popular, diferente do familiar em diversos aspectos. A elite investia em acessórios como limões de cheiro, utilizando seringas e bisnagas para espirrar nas pessoas. Os mais pobres driblavam a falta de recursos, improvisando líquidos caseiros como café, groselha, lama, tinta e até urina.

Nessa brincadeira, a participação de mulher e homens também era diferente. As mulheres da elite não tinham a mesma liberdade para participar dos encontros na rua, mas isso não impossibilitou que elas espiassem e até interagissem em pelas frestas da janela.

As crônicas publicadas pela imprensa da época falam sobre os relacionamentos iniciados durante os entrudos, indicando inclusive a iniciativa feminina na paquera. Fazer uma declaração formal a um homem não era algo esperado de uma mulher, mas uma espirradela de água de cheiro vinda de alguma janela próxima, poderia levar algum pretendente a buscar alguma aproximação.

Os preparativos das festas eram responsabilidade das mulheres, desde a decoração até a criação de artefatos para as brincadeiras, o que representava uma renda extra para as famílias mais pobres, mas também havia casas especializadas em apetrechos para o carnaval que fomentavam a economia nesse período.

Uma brincadeira proibida: belle époque carioca x entrudo popular

A brincadeira do entrudo popular trazia a chance de, uma vez por ano, pregar peças nas pessoas e rir das elites. Além das molhadelas, havia as guerras às cartolas, cujo objetivo era derrubar cartolas dos transeuntes, transformando especialmente os homens brancos em alvos. Não é de se espantar que, por diversas vezes, a brincadeira fosse terminar na delegacia.

O entrudo popular recebia inúmeras críticas e era visto como um costume brutal e selvagem. Não havia um local específico para que ele ocorresse, portanto, em qualquer lugar que alguém estivesse na rua durante o período do entrudo, poderia sofrer algum ataque. As distinções sociais também desapareciam, já que qualquer pessoa, independente da classe social, poderia se tornar alvo. A imprensa não poupava críticas ao entrudo que ocorria nas ruas.

A monarquia apreciava o entrudo e costumava realizar a brincadeira no Paço Imperial, em Petrópolis. 

Em 1825, a atriz e bailarina Estela Sezefreda atirou limão-de-cheiro na comitiva de D. Pedro I durante o entrudo. A coroa não levou na esportiva, embora o líquido em questão fosse comum aos entrudos familiares. Estela foi presa e ficou detida por 24 horas, mas seu nome entrou na história também por outros motivos. A atriz integrou a companhia de João Caetano, em 1932, com quem se casou pouco tempo depois. Juntos ajudaram a construir a história do teatro brasileiro.

Mas, Estela foi presa apenas por incluir o imperador na brincadeira? Na verdade, desde 1604 a prática já era considerada ilegal, isso apenas após quatro anos do primeiro registro do entrudo no Brasil. Alvarás e portarias vieram aos montes, mas apesar das proibições e da repressão do Estado, a brincadeira percorreu o Brasil Colonial, avançou pelo Império, e chegou até as primeiras décadas da República. 

Após a Independência do Brasil, em 1822, a população brasileira passou a se distanciar das tradições e de tudo que fosse de origem portuguesa. O que era de Portugal passou a ser visto como retrógrado, ultrapassado, démodé, o oposto na visão cultural que a elite pretendia trazer para si, e que fora encontrada no frescor da cultura francesa e italiana da época, que trazia um ar de modernidade a um almejado modelo de civilização.

A importação da estética francesa acompanha também um pensamento, uma herança das ideias de alguns iluministas que acentuam a importância da razão, em detrimento do que consideram o seu oposto, empenhando tentativas de eliminar o corpo, o movimento, a expressividade, o som, a poesia, a melodia e tudo que surge da experiência cotidiana, do encontro entre os corpos.

A fim de ocupar esse almejado lugar nas festas carnavalescas brasileiras, a elite trouxe a versão brasileira das elegantes e ostentosas “bals masqués” francesas, especialmente comuns na década de 30. A participação popular nesses bailes era bastante restritiva, já que além de serem cobrados altos valores para os ingressos, os organizadores permitiam apenas participantes com “referências familiares”.

Foi nessa época também que as publicações da imprensa começaram a utilizar o termo carnaval em oposição ao entrudo. Surgem também as primeiras sociedades carnavalescas, compostas por membros da elite que se reuniam para exibirem suas luxuosas fantasias e brincarem o carnaval. O Congresso das Summidades Carnavalescas é considerada a primeira Sociedade Carnavalesca. No mesmo ano surgiu também a Sociedade Veneziana.

“À meia noite foi servida, no grande salão da quarta ordem, a ceia do Congresso das Summidades Carnavalescas. Além de todos os sócios ricamente fantasiados, estiveram presentes muitas famílias respeitáveis e pessoas de distinção. Entre outras saúdes fizeram-se as seguintes: − Ao progresso, à civilização, à abolição do entrudo antigo.”

Correio Mercantil, 22 de fevereiro de 1855.

A crítica aos entrudos, a repulsa à manifestação pobre e mestiça e o discurso higienista da época, se acentuou. Em 1886, a Inspetoria de Higiene divulgou o seguinte comunicado:

A crítica aos entrudos, a repulsa à manifestação pobre e mestiça e o discurso higienista da época, se acentuou. Em 1886, a Inspetoria de Higiene divulgou o seguinte comunicado:

“A inspetoria geral de higiene aconselha aos habitantes desta capital que se abstenham do jogo do entrudo, divertimento bárbaro, impróprio de uma nação civilizada e que só males produz aos que a ele se entregam (…) Se todos aceitarem este conselho higiênico, se os chefes de família se empanharem nesta cruzada de civilização e de progresso, muitas vidas serão poupadas e as autoridades ficaram dispensadas de fazer cumprir as determinações da postura municipal, que proíbe tão prejudicial passatempo.”

Gazeta de Notícias, 7 de março de 1886

A reivindicação das mulheres pelos direitos

No final do século XIX, enquanto os entrudos familiares e populares ocorriam no Brasil, o movimento feminista ganhava força na reinvindicação por cidadania, tendo como principais pautas a educação e o voto. 

A partir de 1827, a legislação passou a estender a abertura das escolas públicas às mulheres. A educação feminina restrita aos conventos e ao lar, passou a ser criticada. Nísia Floresta (1810-1885) publicou em 1832 o livro Direitos das mulheres e injustiça dos homens, que tratava do direito das mulheres à uma educação voltada ao trabalho. Bertha Lutz (1894-1976) destacou-se nas lutas das mulheres pelo direito ao voto, tendo fundado a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, conquista que só veio em 1932 no governo de Getúlio Vargas, ainda assim com restrições que só foram extintas em 1934. Essas primeiras reivindicações surgiram especialmente pelas mulheres da elite, dando um caráter mais comportado e conservador ao movimento, mas nem por isso menos subversivo em suas pautas. O protagonismo da mulher na vida social se intensificava, assim como nas festas carnavalescas. 

Os bailes de máscaras pretendiam eliminar os entrudos, mas de certa maneira acabou por intensificá-los. As elites ostentavam fantasias caríssimas vindas da Europa, e as classes populares passaram a imitá-los, acentuando a criatividade das mulheres da confecção de fantasias e adereços.

As brincadeiras não foram abandonadas, mas aos poucos, foram ficando menos agressivas. Os cortejos ficavam cada vez mais numerosos, dando origem aos préstitos.

As sociedades carnavalescas também passaram a organizar seus préstitos, com comitivas que desfilavam em pequenos carros alegóricos, a fim de se exibirem à população. Em geral, eram realizados dois desfiles por ano: no domingo de carnaval com o préstito burlesco, com teor crítico e participação de intelectuais e abolicionistas, e na terça-feira com o préstito de gala, esse sim, sem limites para a ostentação. 

Embora a participação popular não fosse totalmente incluída, ela não permaneceu passiva. Eram as classes populares que, além de acompanharem os préstitos, enfeitavam as ruas, e além disso, começaram a surgir as sociedades suburbanas organizadas por pequenos comerciantes em busca de prestígio.

Chamadas também de “Grandes Sociedades” ou “Grandes Carnavalescas”, as três mais importantes foram Os Tenentes do Diabo, Os Fenianos e o Club Democráticos. Em 1881, elas fizeram um manifesto:

“Inaugurado o carnaval nesta corte, há longos anos (…) o seu aparecimento foi acolhido com geral agrado pela população fluminense, que nesse folguedo viu, com justeza e discernimento, uma prova de progresso e civilização, e que (…) baniu de seus antigos hábitos, como nocivo, como anacrônico, como impróprio da sociedade moderna e da civilização adiantada a que tem atingido, o bárbaro divertimento do entrudo (…) Entretanto, de há dois anos para cá, o entrudo começou a ressurgir, e, avançando gradativamente, ameaça este ano tomar proporções assustadoras. O seu restabelecimento será o aniquilamento completo do carnaval, isto é, o atraso em vez do progresso, a treva em lugar da luz, a morte substituindo a vida (…) Seria incontestavelmente doloroso que esses dispêndios, que estes sacrifícios, que estes esforços fossem mal compreendidos e tivessem imerecido acolhimento, sendo assim suplantado o carnaval, que representa a civilização, pelo entrudo, que representa o barbarismo!”

Jornal do Commercio, 25 de fevereiro de 1881

As manifestações populares de rua do carnaval não ficariam concentradas nos modelos propostos pela elite. A população negra trazia características próprias a esses cortejos, à exemplo dos cucumbis. Os grupos de cucumbis eram compostos especialmente por mulheres negras e homens negros, e até 1884, esses grupos não foram citados como associações carnavalescas pela imprensa da época. Suas referências vem da cultura africana  e da resistência à escravidão. Quando passam a ganhar espaço nos periódicos, a imprensa começa a transformar os cucumbis em atrativo turístico. Ao contrário de salientar o que vem do popular como algo primitivo e irracional, a Sociedade Iniciadora Cucumbys Carnavalescos despertava outra percepção.

O carnaval popular de rua

“(…) Por causa deles de certo nunca desaparecerá o carnaval. São constantes e sempre interessantes com os seus batuques e danças originais, já de pouco interesse para nós que estamos habituados a vê-los mas curiosas para os estrangeiros.” 

Jornal do Comércio, 20 de junho de 1892.

A princípio, a crítica das sociedades carnavalescas tradicionais que visavam a eliminação dos entrudos, transformou-se em uma crítica ao fato de que os entrudos conseguiram se adentrar ao carnaval. Ao mesmo tempo, outro olhar acentua a força dessa festa popular, que tirou da elite abastada a exclusividade quanto à forma de expressão desses eventos, e isso ocorreu com o reconhecimento da cultura africana na formação do carnaval. O confronto de perspectivas continuaria se alongando ao longo da trajetória do carnaval, e esse contraponto cultural seria mais uma vez resolvido nas ruas com os “ranchos”, “blocos” e “cordões” que se popularizaram a partir da década de 1920 e continua levando cada vez mais pessoas às ruas do país.

Quanto às mulheres, que davam sustentação à festa na produção de fantasias, bisnagas e decorações, ou que, mesmo das janelas, integravam-se ao festejo, hoje estão em peso como foliãs ocupando as ruas e continuam se adentrando nos mais diversos setores da maior festa popular do Brasil.

Leia também o artigo As mulheres na história do carnaval

REFERÊNCIAS

CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da folia. Uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

MONTEIRO, Débora Paiva. O mais querido “fora da lei”: um estudo sobre o entrudo na cidade do Rio de Janeiro (1889-1910).

ALVARES, Lucas Cardoso. O Rio Civilliza-Se: Memórias das Sociedades Carnavalescas, Uma Perspectiva Brasileira.

OLIVEIRA, Arthur Eduardo de Oliveira. A Construção do Carnaval das Grandes Sociedades Carnavalescas a partir da Imprensa do século XIX.

BRASIL, Eric. Cucumbis Carnavalescos: Áfricas, Carnaval e Abolição (Rio de Janeiro, década de 1880).