Eu lírico na literatura: realidade ou ficção?
Alguém acaba de nascer em algum lugar do mundo. Aos poucos, esse novo ser aprenderá a se relacionar com os adultos e com o ambiente que o cerca, e será cada vez mais inserido no que chamamos de realidade.
Mas a realidade humana é diferente da realidade das outras espécies. A consciência humana se diferencia das demais porque ela pensa e reflete sobre si mesma.
Sendo assim, se o mundo que nos cerca, bem como nossas relações, são objetos de nossa consciência que pensa sobre o mundo e sobre si, o ser humano é, ao mesmo tempo, o sujeito e o objeto dele mesmo.
Esse processo que ocorrerá com o recém-nascido, à medida que ele for se desenvolvendo, aconteceu com todos e todas nós.
Quando cada ser humano começa a identificar as coisas do mundo, e se relacionar com o ambiente e consigo mesmo, ele aprende a linguagem, um sistema simbólico capaz de representar tudo que pertence a esse mundo.
A partir desse momento em que somos inseridos na linguagem, coisas magníficas começam a acontecer.
Nossos sentidos e percepções extrapolam o aqui e agora, e as palavras tentam dar conta de expressar isso.
Uma história que se passa no século XVIII na Inglaterra nos coloca nesse outro espaço/tempo. Embora não possamos tocar esse lugar ou acessar esse tempo no plano físico, podemos percebê-lo em nossa consciência de acordo com nossas referências. O magnífico é constatarmos que todo o corpo também sente essa experiência.
Sendo assim, existe uma consciência que é forjada pela palavra, um tempo específico do ser humano e da sua presença no mundo. Trata-se de uma consciência que se recria constantemente através da palavra.
Também nos transportamos ao futuro. Através da palavra somos capazes de construir na mente um tempo que ainda não existe.
Mas não podemos nos esquecer que todos e todas nós, seres humanos, também possuímos um corpo, além dessa consciência. Por isso nós coexistimos nos dois planos, tanto no físico quanto no simbólico, simultaneamente.
Pensando no ser humano que acabou de nascer, sabemos que ele vai adquirir a cultura do meio em que vive. Conforme ele for crescendo será cada vez mais inserido no universo da linguagem, aprendendo palavras que lhe remetem às coisas, conceitos, valores e que se relacionarão com o meio e consigo mesmo.
Ele ouvirá histórias. Algumas impactarão seu imaginário de forma a fazer sentido. Outras ele não compreenderá, talvez mais à frente, quando amadurecer e se tornar adulto. Talvez ele simplesmente não goste, ou ainda, pode ser que esse ser, com toda bagagem que ele já possua constate: isso não é real, é ficção.
Mas afinal, o que é realidade e ficção? Uma biografia, por exemplo, conta a história do sujeito ou de quem a conta? É possível adotar uma medida para separar esses dois conceitos, realidade e ficção, e aplicá-lo a toda e qualquer situação?
Passeando por essa linha tênue entre esses dois polos, algumas escritoras brasileiras trazem suas percepções a partir das suas escritas.
Realidade ou Ficção?
Mesmo sendo o ser humano o construtor da realidade, ele não se percebe dessa forma.
É certo que as coisas existem, não necessariamente pela construção da humanidade, mas a maneira de percebê-las e de se relacionar com elas é construída.
Alice Ruiz reflete sobre esse limite em sua obra.
“Quando se está escrevendo acaba sumindo esse limite entre ficção e a biografia, mas eu também posso te dizer que tudo é ficção. Porque a gente não escreve durante os eventos que nos provoca a inspiração, é sempre depois. Então, é sempre traduzido de alguma forma, é sempre interpretado de alguma forma. Já não é mais o fato, já não é mais o acontecimento, é sempre uma inspiração.”
A imagem que Ruiz provoca pode remeter algumas pessoas à brincadeira do Telefone sem Fio. Uma mesma informação que nos é transmitida, já passou por outros transmissores que colocaram, mesmo sem querer, o seu olhar sobre a história narrada.
Nessa relação entre o que é vivido e o que é transposto para a escrita, o que se cria, assim como na vida, surge em uma via de mão dupla.
“A Lúcia obviamente está sempre presente na minha obra porque foi a Lúcia que escreveu, embora eu nem conheça essa Lúcia que está escrevendo tudo, porque a gente se descobre na escrita. De repente você encontra coisas ali sobre você mesma que você nem se dava conta que existiam.”
Lúcia Bettencourt reforça esse movimento criativo em que a obra, ao mesmo tempo em que é criada, recria a própria escritora. Ela descobre coisas sobre si mesma, embora seja possível que elas já estivessem ali, sedimentadas nas memórias de suas vivências.
Sendo assim, uma obra, mesmo que embasada em uma história real, nunca será puramente realidade, porque passa pela observação dos olhos de quem escreve. Somente a pessoa de quem se escreve pode saber sobre si mesma, e mesmo assim, não tão completamente a ponto de explanar toda a realidade que a cerca.
Já uma ficção, embora seja forjada pelos referenciais de quem escreve, pode dizer muito mais sobre inúmeras outras pessoas que se identificam com a narrativa, a ponto de estar retratando algo que ocorre na realidade.
Quando o autor se descobre ao escrever, ou se modifica por causa da escrita que realizou, ele cria a si mesmo enquanto constrói sua obra. Isso não é ficção.
Rememorar através da Escrita
Uma vez rememorada a realidade, até que ponto essas memórias de fatos vividos são fiéis a ponto de afirmarmos que o que ocorreu foi real?
“Tem um conto meu “Olhos D’água”, e alguns episódios daquele conto realmente eu vivi com minha mãe. Sentar na soleira da porta e observar as nuvens ácidas nos céus. Pentear o cabelo dela.”
Os fatos narrados por Conceição Evaristo podem não ter ocorrido exatamente como surgem em sua memória, afinal, a escrita veio depois. As nuvens poderiam não ser ácidas, talvez ela não se sentasse na soleira, e sim em outro local perto da porta. Ainda assim, os elementos que compõem sua subjetividade são reais, pois passam pela percepção e pelo olhar da escritora.
Escrevivência, termo cunhado pela escritora para qualificar sua obra, reconhece que sua escrita surge das relações cotidianas, das experiências vividas por ela enquanto mulher negra.
Em seu conto “Zaíta Esqueceu de Guardar os Brinquedos”, Conceição retrata a história de uma menina vítima de bala perdida.
“O que eu escrevo não significa que “Eu” particularmente, Conceição Evaristo, tenha vivido essa situação. Mas qualquer pessoa da periferia sabe que as crianças morrem de bala perdida. Então você ouve o noticiário da criança que morre de bala perdida e você escreve Zaita.” (…) É sempre prestando atenção na vida (…) que surge a literatura.”
Embora seja uma história ficcional, o conto traz uma situação que muitas pessoas reconhecem em seus cotidianos, transformando-se em um retrato da realidade. Realidade essa, compartilhada pela vivência de muitas pessoas que se reconhecem na obra, como se fosse uma biografia de suas vidas.
Alteridade na Escrita
Como vimos, a escrita pode ser uma ferramenta que possibilita a criação de uma obra ficcional que se baseia em memórias, encontrando seu ponto de intersecção na vida real e, portanto, sendo também um aspecto do que chamamos de realidade.
E quando essas memórias não fazem parte das nossas vivências?
Lilian Fontes faz essa abordagem em suas obras. Seu primeiro livro de contos, “Escrita Fina”, trazia temas que não eram comuns à sua vivência cotidiana, embora estivessem no mundo esperando para serem investigados.
“O meu interesse na escrita é justamente esse. Poder penetrar em um mundo que não é o meu mundo. Eu quis penetrar nesses universos, que não eram os meus, e isso me levou a pesquisar.”
O repertório de Nélida Piñon no campo da História lhe permite compreender a trajetória das relações sociais entre homens e mulheres, bem como a violência empregada pelo masculino no feminino. Isso, de certa forma, aproxima-a tanto do masculino como do feminino, enquanto escritora.
“Eu acho muito importante que o autor pense: eu sou ele (…). Eu não posso ser a escritora que eu desejo ser se eu não for mulher, se eu não for homem, se eu não for criança, se eu não sentir vibrações e as modalidades afetivas dos bichos.”
A alteridade na literatura dessas autoras brasileiras, que se manifesta na construção de diferentes personagens, pode ocorrer de diversas formas, seja na pesquisa histórica ou na observação de seus modos particulares.
No livro de Beatriz Bracher intitulado “Antônio”, a escritora construiu três personagens narradores, e se empenhou em marcar a diferença de cada um a partir, não apenas da palavra, mas em suas características expressivas verbais.
“Eu entrevistei algumas pessoas. Eu queria muito que cada personagem tivesse um vocabulário diferente em função da geração, em função do estudo. Mesmo a personalidade de cada personagem (…) é dada nem tanto pelo que você fala do personagem, mas sobre a fala, como o personagem fala.”
Carola Saavedra em sua escrita exercita a aproximação. Criada em uma família de quatro irmãos, a escritora salienta a importância dessa convivência para a criação de personagens masculinos em suas obras, e especialmente o olhar disponível nessas relações.
“Quando eu desenvolvo um homem eu posso me aproximar até um certo ponto, e a partir desse ponto é puramente intuitivo. (…) Eu observo. (…) Ouço muito (…) Há algo da sua vivência que te permite se aproximar mais ou menos.”
A Realidade da Ficção
Mesmo reconhecendo a ficção de uma obra, existem inúmeros traços da realidade presentes nela. Em uma biografia, há sempre o olhar do escritor que pode dar um caminho diferente do que aquilo que ocorreu na realidade.
Emprestamos elementos do real para a ficção, de modo que se torna uma expressão da realidade.
Realidade e ficção se fundem. Corpo e consciência também. Essas duas fusões podem ocorrer em um nível ficcional ou real, de acordo com a capacidade imaginativa e simbólica de cada leitor. A exemplo de Miriam Alves:
“Aquela minha personagem Dona Sina é lógico que não é a minha vó, e nunca vai ser. Mas ela tem muita doação de pele, assim como todos os outros personagens. Então é uma doação de pele, de sensibilidade, de quem é compatível, comigo. Às vezes, quando você termina de escrever não é compatível com quem está lendo essa doação. Mas de uma outra forma causa uma reação de rejeição, ou se é compatível, de criar e fazer outros órgãos.”.
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