Se você acompanha a série “Literatura, Substantivo Feminino”, já deve ter percebido que não há limites ou restrições de temas que despertem o interesse dessas escritoras brasileiras.
Mesmo assim, há temas que podemos considerar como “delicados”. São aqueles que, mesmo não tendo necessariamente relação direta com a vivência da escritora, acabam invadindo suas escritas, pois estão presentes na sociedade. Claro, também há escritoras que se dedicam a temas que elas sentem na pele.
No oitavo episódio da série “Literatura, Substantivo Feminino”, as escritoras falam sobre a abordagem de “Temas Delicados” em suas obras. Dentre os assuntos discutidos, dois recebem especial destaque: o corpo negro e a violência contra a mulher.
A princípio, esses temas podem parecer distintos, mas na verdade eles estão intimamente relacionados.
À luz da experiência dessas escritoras, vamos abordar esses temas “delicados”, dando especial destaque à experiência que elas tiveram ao abordá-los: tanto no que corresponde à ampliação das suas percepções de mundo, quanto com relação às emoções e sensações que emergiram durante o processo de escrita e que se repetem a cada releitura da obra.
Cristiane Sobral, Cidinha da Silva, Stella Maris Rezende, Lilian Fontes, Beatriz Bracher, Miriam Alves e Conceição Evaristo encontram-se em “Temas Delicados”, o oitavo episódio da série “Literatura, Substantivo Feminino”. Assista!
O Corpo Negro dentro e fora da Literatura Brasileira
“O que que representa o corpo negro? Eu já falei um monte de coisas do corpo negro, mas tem uma outra coisa que representa esse corpo negro na minha literatura. Ele representa a recuperação desse corpo negro.”
Miriam Alves
Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Cidinha da Silva e Miriam Alves não apenas abordam o corpo negro em seus livros, mas fazem uma crítica ao levantarem questões que foram ignoradas por séculos na literatura. Uma dessas questões é a maneira como se retrata o corpo negro.
A fala de cada uma dessas escritoras trazem uma dose gigantesca do desejo e da necessidade da “recuperação” do corpo negro, a exemplo da fala de Miriam Alves. Ao longo da história da literatura brasileira, a representação de negras e negros foi marcada pelo reforço de estereótipos, o que contribuiu para o descaso e o desprezo com relação aos assuntos raciais no Brasil.
Não há como entender essas marcas e o significado da “recuperação do corpo negro”, da qual Miriam Alves fala, se antes não entendermos esse processo histórico que retirou do negro o seu próprio corpo. Miriam Alves explica:
“Esse corpo negro é um corpo que chega ao Brasil como um corpo que não lhe pertence. Um corpo que lhe chega como mão de obra. O único que não era dono desse corpo era a pessoa, a pessoa dona do corpo, o ser humano do corpo. Então, a esse corpo está autorizado tudo. A matar, estuprar, extenuar, derreter, todas as marcas nesse corpo. Mas o que era esse corpo antes? A quem pertencia esse corpo?”.
Miriam Alves
No Brasil, ao estudarmos a construção histórica de nosso povo, fica evidente que a história do negro começa na escravidão, como se antes não houvesse um povo com uma cultura, uma língua e costumes. Miriam Alves reforça:
“Aí chega esse corpo aqui, com essa história anterior, uma história que é apagada e escreve um outra história em cima desse corpo. Que é o corpo do escravizado e atualmente é o corpo do miserável, que é o corpo da estatística.”
Miriam Alves
Essa história que foi apagada do povo negro nos deixou sem referências, não só com relação à genealogia familiar dos nossos ancestrais, das famílias africanas, mas sem nenhuma referência quanto à produção intelectual e cultural que tanto a comunidade negra como a comunidade indígena produziram.
E isso persiste. Se não temos a história da nossa ancestralidade à disposição, a história das negras e negros na atualidade também é apagada.
Cristiane Sobral se empenha nas mesmas questões e explica:
“O legado eurocêntrico é o que a gente mais tem, mas esse legado não é o único como matriz de constituição da nossa história e da nossa memória. (…) Então é disso que a gente está falando quando diz que o povo negro ficou sem chão, ficou desarmado, por isso até algumas perspectivas do processo de escravização trazem essa crueldade que é o afastamento de família, o afastamento de objetos pessoais, que fazem com o que sua constituição como pessoa seja totalmente enfraquecida.”
É importante salientar que o pensamento patriarcal e o machismo, tal como vivenciamos hoje, são produtos culturais de uma sociedade branca. Então, existe um ponto de intersecção entre gênero e raça ao abordarmos esse assunto.
Traços do matriarcado da mulher negra reforçam isso na sociedade brasileira e em outras espalhadas pelo mundo afora devido à diáspora africana.
O Mulherismo Africano é um dos exemplos que nos ajuda a compreender a história da mulher africana e do matriarcado da África. Os grupos africanos que possuem uma organização patriarcal ou que oprimem as mulheres passaram pela influência da cultura ocidental branca.
Nesse ponto é que percebemos que não adianta discutirmos violência contra a mulher sem incluir na pauta as questões raciais.
Para o povo negro, reconhecer, compreender e vivenciar nossa história é urgente para entendermos a importância de preencher esse vazio que nos falta. Esse preenchimento ocorre também a partir do resgate da ancestralidade.
Cristiane Sobral explica:
“A gente é capaz de aceitar uma mitologia grega, que tem deuses, e a gente não consegue conceber uma mitologia, uma cosmogonia africana que fala de orixás (…) que fala de vodus e tantas outras expressões que dentro do nosso conceito social são demonizadas, figura essa do demônio que não existe na ancestralidade africana, que vai existir na concepção cristã. É uma violência o apagamento da memória e da ancestralidade é uma das violências que nós negros e negras sofremos e temos sofrido dentro desse processo de escravização, de apagamento e de facelamentos das identidades.”
Nesse episódio da série, Cidinha da Silva fala especialmente sobre a violência contra as mulheres, em especial contra as mulheres negras e também da importância de uma literatura de autoria negra a fim de buscar sentidos positivos para a existência desse corpo negro.
“Eu faço isso também na minha literatura, eu dediquei 3 livros dos 7 livros de crônicas que eu escrevi, publiquei até 2016, dediquei 3 desses livros a esse tema.”
Cidinha da Silva
Conceição Evaristo traz mulheres negras como protagonistas em suas obras, e em uma delas, relembra que além da violência física há outros tipos de violência pelos quais as mulheres passam, especialmente as mulheres negras.
Em uma de suas histórias, um casal, sendo o homem um agressor da mulher, aproxima-se dela. Conceição Evaristo descreve a cena:
“Então, tem um momento que ele vai servir uma canequinha de café para ela, e ela está sentada naquele estado dela de odiamento. Quando ele se aproxima ela pensa que ele vai agredi-la, então, ela encolhe toda esperando a pancada. Ele se aproxima e quanto mais ele se aproxima ela encolhe. Aí ele vem com a canequinha de café por debaixo do nariz dela, então quando ela sente o cheiro do café é que ela entende que era um gesto de carinho, que ela não ia apanhar.”
A violência contra a mulher se manifesta através da agressão física, mas também da psicológica, traço que Conceição Evaristo também quis abordar no exemplo acima.
O Corpo da Mulher
A violência contra a mulher no Brasil atinge todas as classes e raças, mas as mulheres negras são as maiores vítimas.
Quando Lilian Fontes escreveu “A Hora do Recreio”, ela abordou a violência contra a mulher em um episódio em que ocorreram dois estupros, o da mãe e o de seu filho. Tudo acontece quando um ladrão invade uma casa no bairro do Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro.
“Foi um conto que eu trabalhei muito a sintaxe, e cada vez que eu lia, nossa, eu ficava muito mexida, saia da mesa, falava “sai de mim, sai de mim”, porque é uma vida, é uma descrição muito forte desse estupro, então realmente é violento, isso mexia muito comigo.”
Lilian Fontes
Beatriz Bracher também abordou a violência sexual contra a mulher em “Anatomia do Paraíso”. A escritora não havia passado por uma situação semelhante, mas o processo de escrever a cena causou um profundo impacto nela, pois quis mergulhar nos sentimentos conflitantes pelos quais pode passar uma mulher quando em situação de abuso.
“Mas essa de abuso foi difícil para mim escrever, foi uma coisa que eu me transformei muito depois de ter escrito. Uma coisa que eu não tinha, não é que eu não tinha o controle, eu tinha o controle, eu construí essa cena muito dedicadamente, reescrevi, escrevi. Mas foi terrível assim, foi descobrir o que é o desejo pelo abuso, o prazer que o personagem sente em fazer isso e tudo que está envolvido ali. Quando você escreve, você vive aquilo e é muito assustador, você não só sofreu o mal, mas viveu o mal.”
Beatriz Bracher
Stella Maris Rezende reconhece a complexidade em todos os temas que ela aborda, tal como são complexos os temas da vida. Ela também reforça o quanto é importante trazermos esses temas complexos e delicados para a literatura.
“Ainda mais nos dias de hoje com a violência aumentando, com o mundo, toda essa crise mundial, com todos os valores sendo questionados. Quanto mais a gente falar, sobre todas essas coisas complexas, através da arte é a melhor maneira, não se pode ter nenhum preconceito em relação à literatura, desde que ela trate do assunto com arte.”Assista “Temas Delicados” e confira na íntegra mais esse episódio de “Literatura, Substantivo Feminino”!
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