Quando observamos as cidades urbanas, não nos deparamos apenas com as construções realizadas pelo ser humano. Nos deparamos também com os valores de uma sociedade, já que estes também se manifestam naquilo que essa sociedade cria. Portanto, é possível afirmar que o espaço urbano é uma extensão dos nossos costumes, pensamentos, comportamentos e cultura.
No entanto, isso não significa necessariamente que a coletividade esteja presente no planejamento desse espaço urbano. Esse papel, ao longo da história, tem sido desempenhado por um único grupo que ainda comanda esse poder.
No Brasil Colonial, as mulheres foram incumbidas de cuidar da casa e lá ficavam praticamente confinadas em seus afazeres domésticos, longe dos espaços públicos. O espaço público naquela época era ambiente do homem. Os tempos mudaram, mas a lógica da construção desses espaços ainda permanece a mesma.
Nas cidades, as mulheres enfrentam a violência apoiada por esse modelo urbanístico, especialmente as mulheres negras e periféricas. Mulheres saindo de seus trabalhos altas horas da noite esperam por seus ônibus em ruas mal iluminadas, calçadas estreitas dificultam a locomoção de mães que precisam levar seus filhos às escolas e, na ilusória segurança de seus lares, mulheres sofrem violência dentro de suas casas. No caso de mulheres trans, a violência é ainda mais intensificada.
É evidente que o legado do modelo patriarcal ainda se faz presente. Não é de se espantar que as mulheres tenham sido excluídas desse planejamento, embora sua participação na utilização desse espaço, especialmente na atualidade, seja intensa, bem como sua contribuição econômica para a manutenção dessa sociedade.
Pensando na necessidade de um ambiente urbano mais democrático é que surgiu o Urbanismo Feminista, que é, ao mesmo tempo, um movimento e uma teoria bem pautada em estudos que incluem os impactos das atividades das mulheres na vida social, paralelamente à sua exclusão nas esferas de poder, bem como no que concerne a tomada de decisões da engenharia urbana.
O Urbanismo Feminista visa romper com os atuais paradigmas que embasaram a construção de um ambiente que salienta a desigualdade. O objetivo é, sobretudo, ter como cerne do planejamento urbano a “vida”, ao invés do capital.
Com a “vida” no centro do planejamento das cidades, o Urbanismo Feminista reforça a importância de uma perspectiva interseccional. Sendo assim, além de defender as demandas relativas à gênero, trabalha com a diversidade em sua essência, considerando também as diferenças de classe, idade, etnia, religião, entre outros, bem como a interação entre esses olhares e suas necessidades.
Um exemplo dos avanços propostos a partir desse debate são as atividades do Col.lectiu Punt 6 que, embora reconheça a importância do debate aberto para a realização de cada projetol defende cinco valores essenciais para um novo modelo de urbanidade: proximidade, diversidade, autonomia, vitalidade e participação. Entre suas ações estão a de auditorias, projetos educativos, ações que promovam o envolvimento da comunidade, workshops, palestras, capacitação através de treinamentos e pesquisa.
Para entendermos um pouco mais sobre as contribuições do Urbanismo Feminista, conheça o trabalho de algumas mulheres que fazem a diferença na construção de um novo modelo do espaço urbano.
Laís Leal (Brasil) é empreendedora formada em Arquitetura e Urbanismo e foi reconhecida pela revista Forbes Brasil entre os jovens mais promissores na categoria Terceiro Setor e Empreendedorismo Social.
Em entrevista para o Mulheres de Luta, Laís Leão explica sobre seu objeto de pesquisa: gênero e cidade, com foco nos espaços ocupados pelas mulheres. A cidade, como espaço de convivência humana que promete o desenvolvimento social e econômico, acesso ao lazer, à habitação, serviços, trabalho e circulação livre, deveria integrar todos os segmentos sociais que fazem parte da sua concepção, garantindo assim maior atendimento às demandas individuais e coletivas.
Como explica Leão, infelizmente, isso não é o que acontece, pois somente seria possível essa realização se os agrupamentos humanos que se reúnem nas cidades estivessem calcados em bases solidárias de promoção da justiça social, com igualdade de oportunidades para todos e todas – o que está longe de ser alcançado.
Joice Berth (Brasil) é arquiteta e urbanista pós-graduada em Direito Urbanístico pela PUC-MG. Escreve para o portal Justificando e para a revista Carta Capital. É autora do livro “O que é empoderamento?”. Seu trabalho abrange questões relacionadas ao direito à cidade levando em conta as questões de gênero e raça.
Dolores Hayden (Estados Unidos) é uma das arquitetas de maior referência na abordagem do Urbanismo Feminista. Hayden ministra aulas de arquitetura na Universidade de Yale além de ter trazido inúmeras contribuições sobre o estudo do urbanismo em relação ao gênero e a vida doméstica. Publicou diversos livros entre eles Building Suburbia: Green Fields and Urban Growth, 1820-2000; A Field Guide to Sprawl e Redesigning o sonho americano: gênero, moradia e vida familiar.
Zaida Muxí Martínez (Argentina) é uma das pioneiras no estudo de gênero, diversidade e arquitetura. É doutora pela Escola Técnica Superior de Arquitetura de Sevilha e ministra aulas na Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona. Autora do livro “Mujeres, casas y ciudades – Más allá del umbral”. Foi co fundadora do Col.lectiu Punt 6.
Adriana Ciocoletto (Argentina) é doutora em Arquitetura e Urbanismo e vive em Barcelona, na Espanha. É autora da tese “Urbanismo para a vida cotidiana: Ferramentas de análises e avaliação urbana a partir da perspectiva de gênero”. Integra o Col.lectiu Punt 6 que junto a outras profissionais realiza ações e projetos que contribuem para um modelo de espaço urbano a partir da diversidade.
Essas são apenas algumas das diversas mulheres que têm trabalhado por uma cidade que realmente leve em conta a diversidade, não apenas com relação à sua utilização, mas especialmente, na construção desse espaço.
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