“Vejam bem o que fiz: eu fui buscar defesas científicas para o íntimo, o psíquico, para conciliar a pessoa de dentro com a de fora. Fui procurar na sociologia a explicação para questões de status social. E na psicanálise, proteção para a expectativa de rejeição. Essa é a minha história.”
Virgínia Bicudo
O relato acima narra as motivações que levaram Virgínia Leone Bicudo a trilhar uma brilhante trajetória na sociologia e na psiquiatria brasileira.
Para conhecer sua história, voltemos ao dia 21 de novembro de 1910, quando Virginia nascia na capital paulista. Sua mãe, a imigrante italiana Giovanna Leone, seu pai, um homem negro chamado Theófilo Julio Bicudo, se conheceram durante o período em que trabalhavam em uma fazenda em Campinas, interior de São Paulo, pertencente ao coronel e senador Bento Augusto de Almeida Bicudo.
Theófilo Bicudo era afilhado de Bento Bicudo, que também foi um dos fundadores do Estado de S. Paulo. Com apoio do padrinho, Theófilo pode se dedicar aos estudos, e sabendo de sua importância, estimulou os filhos também a estudar. O pai de Virgínia fez carreira como funcionário dos Correios e Telégrafos, chegando ao cargo de diretor de uma agência da capital paulista. Ainda assim, sofreu as adversidades do preconceito racial. Quando foi reprovado no curso de medicina, escutou do professor que o reprovou: “Negro não pode ser médico”.
Virgínia também sofreu as amarguras do preconceito racial, mas buscou na ciência as ferramentas para lutar contra o racismo.
Entre a sociologia e a psicanálise
Em 1930, Virgínia formou-se na Escola Normal da Capital, que hoje leva o nome de Escola Caetano de Campos. Continuou seus estudos na Escola de Higiene e Saúde Pública do Estado de São Paulo, onde formou-se como educadora sanitária em 1932. Já nessa época, Virgínia atuava como visitadora psiquiátrica atuando na prevenção de problemas psíquicos de crianças, e Educadora Sanitária.
Virgínia Leone Bicudo continuou seus estudos, seguindo o exemplo e os conselhos de seu pai. Desde cedo buscava respostas para questões raciais que afetam tanto as relações externas como as internas.
Em 1935, aos 25 anos, Virginia matriculou-se no curso de Ciências Políticas e Sociais da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (ELSP), tornando-se a única mulher em sua turma de oito alunos. Ela chegou a afirmar que optou pelo curso de sociologia porque queria compreender as questões raciais no ambiente social. Nessa época, Bicudo já nutria interesse pela psicanálise, mas foi durante o curso de ciências sociais que Virgínia se aprofundou nos estudos de Sigmund Freud. Nessa época, surgiram dois personagens importantes que contribuíram para a trajetória de Virgínia na Psiquiatria.
Em 1936, a austríaca Adelheid Koch, membro da Sociedade Psicanalítica de Berlim, refugiou-se no Brasil em decorrência da Segunda Guerra Mundial, e em 1937, Virgínia Leone torna-se a primeira mulher analisanda da doutora.
Outra pessoa importante na trajetória de Virgínia foi Durval Marcondes, psiquiatra fundador do movimento psicanalítico brasileiro. Após se formar em 1938, Virginia começou a ministrar aulas de Higiene Mental e Psicanálise na mesma faculdade onde se formou, ao lado de Marcondes.
Em entrevista ao SBPSP, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, de 29 de setembro de 1989, Bicudo conta que ao ler um artigo de Freud sobre o processo de sublimação, constatou:
“Percebi que o problema que estava me causando sofrimento era de dentro para fora e não de fora para dentro. Não é sociologia que tenho que fazer, e sim psicanálise”.
Ao se empenhar em resolver questões relacionadas ao racismo, Virgínia acaba unindo a sociologia e a psicanálise, duas abordagens que caminham juntas em sua trajetória profissional
“Fui procurar na sociologia a explicação para questões de status social. E na psicanálise, proteção para a expectativa de rejeição. Essa é a minha história. (Mautner, 2000).
Educação para combater o racismo
Virgínia ingressou no mestrado em 1942, na própria ELSP. Sua tese de dissertação chamava-se “Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo”, a primeira dissertação sobre o tema no Brasil. Nela, Virginia promove discussões sobre o racismo, aborda estudos da psicanálise, e conclui que o preconceito racial resiste mesmo com a diminuição das diferenças sociais. A pesquisadora relatou na tese que:
“Entretanto, a ascensão ocupacional não confere ao preto o mesmo status social do branco, consideradas as restrições demarcadas na linha de cor, ao passo que o mulato garante sua inclusão no grupo dominante, embora em sua personalidade permaneçam as consequências do conflito mental”
Virgínia Leone Bicudo observou que o racismo no Brasil tinha característica específicas pois se tratava de um tipo de preconceito que procura evitar o confronto direto, o que impedia uma tomada de consciência sobre a discriminação.
As questões sobre o racismo, a abordagem social e os estudos sobre a psicanálise continuaram acompanhando a trajetória profissional de Virgínia Leone Bicudo. Em 1944 ela integrou o grupo de fundadores do Grupo Psicanalítico de São Paulo, hoje Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Em 1951, o IPA (Associação Psicanalítica Internacional) reconheceu a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo como uma de suas componentes durante o XVII Congresso Internacional, em Amsterdã.
Dando voz às questões raciais e à psicanálise
Em 1948 ela escreveu “Contribuição para a história do desenvolvimento da psicanálise em São Paulo”. Além de produzir textos científicos, Virgínia utilizou outra mídia para se comunicar com a sociedade: o rádio. Ela escrevia textos com situações cotidianas que eram dramatizados por atores em programas de radioteatro. Após as dramatizações, ela fazia comentários com intervenções psicanalíticas. Esse era o formato do programa “Nosso Mundo Mental”, da rádio Excelsior.
José Nabantino Ramos, que era proprietário da rádio Excelsior, diretor e dono do jornal Folha da Manhã, era um autêntico admirador da psicanálise. Foi através do seu intermédio que os textos de Bicudo também foram publicados no jornal de Ramos, em 1950, chegando a ocupar a primeira página da Folha da Manhã.
Os conteúdos da rádio e os textos do jornal trouxeram a publicação do livro “Nosso Mundo Mental”, em 1956, com comentários de Virgínia sobre a psicanálise.
Em 1954, durante o I Congresso Latino Americano de Saúde Mental, evento que Virgínia ajudou a organizar ao lado de Durval Marcondes, a pesquisadora foi acusada de charlatanismo. O augumento para tal acusação era de que a socióloga e psiquiatra não tinha fomação médica, com alegações que de ela realizava o exercício ilegal da medicina. Vale lembrar que a profissão de psicólogo só foi regulamentada em 1962. Virgínia Leone Bicudo ficou realmente abalada com tudo isso, mas não desistiu.
Em 1955 Virginia vai para Londres a fim de ampliar seus estudos na Sociedade Britânica de Psicanálise, além de realizar cursos na clínica Tavistock, na British Society com Melanie Klein e Paula Heimann, e com Frank Philips. Ela chegou a receber suporte financeiro do governo brasileiro para ampliar seus estudos na Inglaterra durante os cinco anos de sua estadia. Seu retorno ao Brasil marca um novo ciclo em sua vida profissional.
Retorno ao Brasil
De volta ao Brasil em 1960, Bicudo introduziu o curso de Melanie Klein no Instituto de Psicanálise de São Paulo, dirigindo o Instituto entre 1961 e 1974. Virginia também promoveu a vinda de W. Bion para seminários em Brasília e São Paulo.
Em 1966, fez parte do grupo que criou o Jornal de Psicanálise, e em 1967, com Durval Marcondes e outros colaboradores, relançou a Revista Brasileira de Psicanálise, na qual atuou como diretora editorial de 1967 a 1970.
Na década de 1970, Bicudo criou a Sociedade de Psicanálise de Brasília, atuando como professora, supervisora e analista.
Virgínia Leone Bicudo passou a intensificar suas publicações editoriais com artigos em periódicos nacionais e internacionais, deixando seu nome na história da psicanálise brasileira. A psiquiatra também manteve seu trabalho clínico e o envolvimento com a área até três anos antes de falecer.
Ainda assim, sua contribuição para a psicanálise no Brasil é pouco lembrada: sua tese de mestrado, por exemplo, só foi publicada 65 anos depois de ter sido escrita, e tanto a Sociedade Brasileira de Psicanálise quanto a Fundação Escola de Sociologia Política só a homenagearam em 2010, no centenário de seu nascimento.
A data precisa de sua morte, aliás, nem sequer foi registrada, mas sabemos que faleceu em 2003, aos 93 anos, na cidade de São Paulo, deixando uma vasta contribuição aos estudos sobre racismo e psicanálise no Brasil.
Referências
HAUDENSCHILD, Teresa Rocha Leite. Virgínia Leone Bicudo A última entrevista. ALTER – Revista de Estudos Psicanalíticos, v. 36 (1/2), 227-241, 2019/2020 227. Acesso em: 27 dez. 2021
FERNANDES, Fernanda. Virgínia Bicudo: pioneira na psicanálise e no estudo de atitudes raciais. 2020. Acesso em: 27 dez. 2021.
GIANESI, Regina Lacorte. Algumas notas sobre a trajetória de Virgínia Leone Bicudo. 2021. Acesso em: 27 dez. 2021.
FRAUSINO, Carlos Cesar Marques. Um olhar sobre Virgínia Leone Bicudo. Rev. bras. psicanálise vol. 54 nº 3 São Paulo jul/set. 2020. Acesso em: 27 dez. 2021.
MAUTNER, Anna Veronica. Fui buscar defesas para o íntimo. Folha de São Paulo. 06 out. 2000. Acesso em: 27 dez. 2021.
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