A origem da Yabás
Quando Olorum destinou à Oxalá a missão de criar o mundo e os seres humanos, seu sucesso só veio por intermédio de Nanã Barukê, a senhora da sabedoria. Após diversas tentativas frustradas, Nanã tirou uma porção de lama do fundo de um lago e entregou a Oxalá, para que ele pudesse modelar as mulheres e os homens. Oxalá os criou e entregou para Olorum, a fim de que ele os soprasse, concedendo então a vida. A partir de então, a Terra passou a ser povoada pela humanidade.
Essa passagem reforça como Nanã está presente desde a criação da humanidade. Mas é bom lembrarmos que o corpo volta à terra após a sua morte, e a terra é propriedade de Nanã.
Oloduramé ainda vivia no infinito quando liberou suas forças fazendo jorrar uma tormenta de águas. A força foi tão intensa, que enquanto oceanos eram formados, as águas se debatiam em rochas e provocavam cavidades, onde Olokun foi habitar.
Iemanjá é filha de Olokun. Um dia, a rainha dos mares foi visitar Orunmilá, que estava interessado nela. Sem saber ao certo como, Iemanjá saiu da casa de Orunmilá grávida, dando à luz a Oxum. Orunmilá queria ter certeza de que a filha fosse dele, e a enviou para Exu, a fim de que ele pudesse comprovar a paternidade, e assim o fez. Oxum foi criada pelo pai, que sempre procurava mimá-la e satisfazer seus caprichos.
Oxum tem uma irmã, Iansã ou Oiá, que é filha de Iemanjá e Oxalá. Uma passagem conta como Iansã nasceu na casa de Oxum. Acontece que um rei decidiu matar a própria filha, que estava prometida a um príncipe poderoso, mas engravidou do amante. Ao matá-la, o rei jogou seu corpo no rio, onde vivia Oxum. Tempos depois, os pescadores locais acharam uma caixa boiando no rio, com uma criança dentro. Era Oiá, que cresceu protegida pela irmã Oxum.
Para completar o trio de irmãs, Iemanjá também deu à luz a Obá que, ao lado de Nanã, possui o controle das enchentes e da lama.
Nanã inclusive tem uma filha, Ewá, que queria viver sozinha, enquanto a mãe queria que ela se casasse. Ewá chamava atenção por sua beleza, e seu intuito era se dedicar a proteger tudo que é puro, como as matas e os animais. Empenhada em seguir suas vontades, Ewá pediu ajuda ao seu irmão, Oxumaré, que a levou até o final do arco-íris, onde não pôde ser encontrada.
Nanã, Iemanjá, Oxum, Iansã, Obá e Ewá são Yabás, que em iorubá pode ser traduzido como mãe, senhora, a que alimenta os filhos. Suas histórias e características reforçam a cultura africana, e apresentam diversas nuances do feminino.
A chegada das Yabás no Brasil
No Brasil, as Yabás surgem com a diáspora africana que ocorreu em decorrência da escravidão. As senzalas eram compostas por africanas e africanos de diversas regiões, o que fomentou uma miscigenação de valores culturais, que deram origem ao nosso Candomblé.
Na terra do Pau-Brasil, o Candomblé é essencialmente matriarcal, com muitas mães de santo no comando de seus terreiros, preservando tradições africanas sob a regência da força feminina, acentuando ainda mais a importância de cada Yabá.
Saluba Nanã significa nos refugiamos em Nanã ou salve a senhora da lama, e é assim que saudamos a orixá dos pântanos. Ela é a mais velha entre as orixás, e é cultuada há milênios pelos povos daomeanos, e depois foi incorporada à mitologia yorubá.
Nanã é detentora da memória ancestral. É mãe, anciã e reina sobre as águas tranquilas e profundas. Como tem o poder do barro que deu vida aos seres humanos, Nanã também é a senhora da vida e da morte. Ela é a guardiã do portal que fica entre essas dimensões.
No Brasil, o dia de Nanã Buruquê é comemorado em 26 de julho na Umbanda, mesmo dia em que se comemora o dia de Santa Ana, que representa Nanã no sincretismo.
Para agradar Nanã, você pode oferecer arroz, pipoca, feijão, inhame, sarapatel e milho branco. Mas, não ofereça a ela carneiros, peixe de pele, siri e carambola.
Para saudar Iemanjá diga “Odoyá!”, cuja tradução é mãe das águas.
Iemanjá é uma orixá associada à fecundidade e ao caráter materno. Ela cuida, protege e alimenta. As oferendas para Iemanjá são muito conhecidas e suas comemorações ocorrem em diversas datas. No Rio de Janeiro é no dia 31 de dezembro, mas as mais comuns no Brasil são no dia 08 de dezembro e 02 de fevereiro. Jangadas e barcos partem rumo ao oceano levando flores, perfumes e espelhos ofertados à rainha do mar.
Acontece que no dia 08 de dezembro também se comemora o Dia de Nossa Senhora da Conceição, e como Iemanjá corresponde à Virgem Maria no sincretismo, os umbandistas, em especial, também comemoram Iemanjá na mesma data.
O Candomblé do Brasil foi composto por traços de variadas tradições africanas, mas na Umbanda, o sincretismo fica ainda mais acentuado pelo catolicismo. O catolicismo era a religião oficial no Brasil colonial, e as negras e os negros foram obrigados a se catequisarem e se batizarem, e eram proibidos de realizarem seus cultos, o que faz com que esse sincretismo receba muitas críticas. Mas os laços com a África foram mantidos através da cultura oral, possibilitando a prática religiosa de um Candomblé com características variadas.
Orá Yê Yê Ô significa clamemos a benevolência da mãezinha, ou salve a mãezinha. Assim saudamos mamãe Oxum.
Ela é a soberana das águas dos rios e das cachoeiras, e no Brasil, seu dia é comemorado em 8 de dezembro, mesmo dia da Nossa Senhora da Conceição, orixá com a qual Oxum é sincretizada.
Oxum também é a orixá da beleza e da vaidade. Ela se enfeita com colares e jóias, e aprecia riqueza, requinte e amor.
Para agradá-la, filhas e filhos de santo preparam um mulukun. O prato é uma mistura de feijão fradinho, cebola, sal e camarão, mas também pode oferecer milho branco, arroz, fava e feijão preto.
O amalá para Oxum pode ser uma canjica branca cozida em água pura sem sal, e com champagne branco despejado ao redor. Agora, as quizilas de Oxum são tangerinas, carambolas e pombos.
O amalá é a comida que ofertamos aos orixás. É um ritual que reúne a força do médium e da vibração dos elementos que compõem o amalá. O amalá precisa ser bem feito e ter um objetivo específico. A comida é colocada sobre o alguidar, um recipiente de barro, e a bebida fica no coité, um tipo de cabaça. Já a quizila é aquilo que provoca uma reação contrária ao axé do orixá, à sua energia positiva.
Epa Heyi Oiá é a saudação da orixá guerreira que rege os ventos e as tempestades, e significa Olá Iansã.
No sincretismo, Iansã corresponde à Santa Bárbara. O dia da orixá é comemorado em 4 de dezembro no Brasil, mas seu culto teve origem na Nigéria, às margens do Rio Níger.
Para agradá-la, você pode oferecer acarajé, o famoso bolinho baiano feito com feijão fradinho e frito no azeite de dendê.
A pesquisadora Lourence Cristine explica a importância do prato para Iansã, e até o modo de se fazer o acarajé nos remete à orixá.
“O acarajé na sua técnica de preparo é um bolinho, uma massa de feijão fradinho com cebola ralada, e essa massa precisa ser aerada. Então, você precisa moer esse feijão fradinho, misturar com essa cebola batida e bater com uma colher de pau. Esse processo de bater a massa é um processo de incorporação de ar, que se refere diretamente com o elemento ar de Iansã. (…) O acarajé é frito por que ele representa esse elemento fogo e é uma fritura de imersão, que é esse fogo cortante, assim como o raio quando toca o chão e produz esse fogo cortante.”
Mas não oferte abóbora à Iansã, pois embora essa não seja uma quizila sua, Iansã não a come. Acontece que, certo dia, Iansã quase foi morta por um carneiro, que levou seus inimigos ao seu encontro para matá-la. Iansã se escondeu em uma plantação de abóboras, e conseguiu escapar da morte. Por gratidão, ela jurou nunca mais comer abóbora.
Obá Siré!, que significa Rainha Poderosa!, e essa é a saudação de Obá.
Assim como Iansã, Obá é uma orixá guerreira, famosa por ter vencido inúmeras batalhas. Ao mesmo tempo, é uma orixá que acolhe suas filhas e filhos.
No sincretismo, Obá é associada a Joana D’arc, e seu dia é comemorado em 30 de maio. Ela representa as águas revoltas, as pororocas, e as quedas d’água, além de ser a senhora dos redemoinhos.
As comidas preferidas de Obá são as de água salgada, e suas quizilas são sopa, cogumelo e peixes de água doce.
Ri Rô Ewá!. A saudação de Ewá significa Doce, branda Ewá!
Ewá é uma orixá de opinião firme, e quando ela decide, não há quem a faça mudar de ideia.
Com tanta personalidade, você não vai querer ofender Ewá, então, não ofereça galinha, pois essa é a sua quizila. Entre suas comidas favoritas estão o milho com coco, a batata-doce com mel e canela, banana e farofa dendê.
Por causa de seu poder de vidência, Ewá foi sincretizada com Santa Luzia e seu dia é comemorado em 13 de dezembro.
Além das datas comemorativas de cada orixá, em dezembro comemoramos as Yabás, e cada uma delas também tem seu espaço nos rituais dos candomblés.
As Yabás no Candomblé
Tudo foi preparado durante o dia. O barracão decorado aguarda a chegada do público. As filhas e filhos de santo começaram a trabalhar na madrugada do dia anterior, e assim que raiou o dia, a comida começou a ser preparada. À tarde, oferendas aos orixás foram feitas. Exu foi despachado. A festa já pode começar.
Os atabaques ressoam em diálogo com os orixás. São três: rum, o solista que marca os passos da dança, rumpi e lé, reforçam a marcação. A batida dos atabaques convoca as orixás, e elas surgem nos movimentos das filhas e filhos de santo.
E, de repente, o transe. As filhas e filhos são levados pelas Ekedis para serem trajadas. Elas são ornamentadas adequadamente antes de voltarem ao barracão.
As Ekedis são as zeladoras dos orixás, um cargo feminino de extrema importância no Candomblé, que salienta a importância da mulher na organização social do terreiro.
As Ekedis também têm poder de mando no terreiro, e elas tomam conta da cozinha, um espaço sagrado na cultura africana. Gilmara Mariosa observa:
“Na cozinha você produz comida para o orixá, você produz comida para toda a família de santo, e você tem que ter um conhecimento muito grande pra saber fazer aquelas comidas, porque não é qualquer comida que se faz, não é de qualquer jeito que se faz.”
O rito vai começar. Xirê é a festa do Candomblé que respeita a sequência de entrada dos orixás. O primeiro é sempre Exú.
A dança de Nanã surge em movimentos lentos e cuidadosos, como uma anciã que se apoia em seu cajado. Quando balança os braços, parece ninar uma criança, tal qual uma avó amorosa.
As iaôs de Iemanjá trazem a leveza das ondas do mar. Utilizam o corpo um pouco à frente, as mãos simulam o movimento das águas, e a postura é maternal e acolhedora.
Oxum traz para sua dança a fertilidade, acentuando o balançar dos quadris. Iansã surge com movimentos rápidos. Com as mãos para trás, na altura do quadril, ela se move de forma ligeira e astuta, lembrando a força e o poder das tempestades.
Assim como Iansã, Obá dança simulando batalhas, mas utiliza as mãos sobre as orelhas a fim de cobri-las, já que a orixá as cortou por influência de Oxum.
A manifestação das características das orixás aparecem em suas danças e em outras condutas, e elas são tão diversificadas quanto às características femininas.
O que as Yabás nos ensinam?
Gilmara Mariosa reforça:
“Do lado dos orixás masculinos, a gente tem os orixás que são aqueles que tem um temperamento mais de serem guerreiros (…) Quando chega nas mulheres a gente tem as orixás que são guerreiras. A gente tem Iansã, tem Obá, uma figura muito simbólica porque é aquela que chamou os orixás para disputar no braço, e que venceu Ogum numa disputa de espada.”
Quando observamos as orixás femininas, percebemos nelas as mesmas características presentes nos orixás masculinos, não havendo hierarquia de gênero quanto aos papéis que são desempenhados.
“A gente tem essas figuras femininas que são aquelas que vão para frente de guerra. Todos são guerreiros à sua maneira, tem aqueles que vão para a linha de frente da guerra. E tem aqueles que ficam na parte da articulação, no planejamento. A gente tem Oxum, que é aquela que é mais ardilosa, que é aquela que é mais estratégica, que é aquela que negocia, é aquela que articula politicamente que também é necessária numa guerra.”
Gilmara Mariosa mostra que Iansã atua na linha de frente como guerreira e Oxum articula nos bastidores, mas também se coloca em batalha.
“Quando precisa ir pra guerra, ela usa o seu espelho como instrumento de guerra. Ela usa o reflexo do sol para pegar os inimigos, para que assim os guerreiros de frente possam vencer a batalha.”
Já Iemanjá e Nanã:
“A gente tem a figura de Iemanjá, que é uma figura às vezes tida como calma, mas a gente sabe que ela é dona do mar, e o mar nem sempre é calmo. Ela é calma quando precisa ser, mas vira um Tsunami quando precisa ser também.” (…) E a figura de Nanã, aquela que tanto dá o elemento terra para criação da humanidade. E Nanã também é uma figura que representa aquela que defende as mulheres dos maus maridos.”
Mariosa nos conta que como Nanã mandava nos Eguns, ela punia os maus maridos, enviando esses eguns para defender as mulheres.
E quando pensamos em fertilidade, lembramos novamente de Oxum.
“(…) Ela não é convidada a participar de uma sociedade onde vai se decidir o destino do mundo, e como ela é dona de fertilidade do mundo, ela não aceita. Ela retira a fertilidade do mundo, e aí nada mais nasce. Só ela pode devolver isso pro mundo, e sem nada nascendo o mundo não funciona, o mundo não se move. Os orixás masculinos acabam tendo que convidá-la e implorar para que ela faça parte dessa sociedade, e com isso, ela leva todas as outras Yabás também.”
Águas profundas misturadas ao barro são do domínio de Nanã e dessa mistura foi gerada a vida. Obá, ao lado de Nanã, controla o barro e as enchentes, representando também a força física feminina.
Iansã rodopia como o vento e promove tempestades. Iemanjá, sua mãe, reina sobre as águas salgadas dos mares e oceanos. As tempestades em alto mar são encontros de mãe e filha.
“Eram duas ventarolas
Duas ventarolas ventando lá no mar
Uma era Iansã, Eparrei!
A outra era Iemanjá.”
Duas Ventarolas. Ponto de Iemanjá e Iansã
Oxum comanda a água doce e Ewá, filha de Nanã, rege a neblina e os nevoeiros e quem segue seus preceitos não se perde no caminho.
Cada Yabá tem seu simbolismo e seu lugar. A hierarquia, no entanto, é marcada pela idade, pois é comum na cultura africana o respeito aos mais velhos. Mas os orixás masculinos precisam das orixás femininas, o que salienta a igualdade hierárquica de gênero entre orixás, algo que ainda buscamos na atualidade.
Gilmara Mariosa é doutoranda em psicologia pela UFMG, integrante do Núcleo de Pesquisa Conexões de Saberes e pesquisadora em religiões de matriz africana.
Lourence Cristine é doutora em Alimentação, Nutrição e Saúde e pesquisadora em Gastronomia Afro-brasileira, também falou ao Mulheres de Luta.
Fontes de Pesquisa
OLIVEIRA, Lucia Maria Alves. A Dança dos Orixás e suas Representações Sociais nos Candomblés Nagô.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. Companhia das Letras.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás. Salvador: Corrupio, 2002.
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